Amigos do Fingidor

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O velho e o menino

Inácio Oliveira



Era uma vez um velho e um canário que moravam sozinhos numa cabana. O velho tecia um fumo, o canário cantava e cada um era feliz na sua solidão. Um dia, o velho, que já estava muito velho, morreu e o canário ficou tão triste, mas tão triste, que parou de cantar e também morreu de tanta saudade do velho.

Meu avô sempre me contava esta história quando eu era criança; na verdade meu avô não era meu avô de verdade; era só um desses velhos aposentados e sem família que moram sozinhos numa casa velha e mal arrumada. Certa vez, ele, que sempre me via na rua pedindo comida, me levou para morar com ele na sua casa velha e mal arrumada, então eu passei a chamar ele sempre de meu avô, por que eu nunca tivera um avô e eu ficava pensando como seria bom ter avô e tudo mais.

Ele era bom comigo me dava comida e cuidava de mim, me pôs para estudar, mas na escola tudo era muito chato; lá todo mundo tinha pai e mãe, e saber que tudo mundo tem uma coisa que você não tem, dá um negócio estranho dentro da gente. Além disso, porque eu tinha que aprender aquelas coisas inúteis que eu nunca ia precisar ter aprendido? Hoje eu sei que tudo que um homem precisa saber é como ganhar seu dinheiro e como se defender, isso é tudo que um homem precisa saber.

Meu avô gostava muito de contar histórias, principalmente histórias da sua vida. Acho mesmo que ele só me tirou da rua para morar com ele para ter alguém a quem contar suas histórias; o engraçado é que, quando alguém conta a história da sua própria vida, conta mais para si mesmo do que para quem está ouvindo; no início eu até gostava, eram sempre histórias de sucesso e riqueza, ele era um dos muitos que enriqueceram com a borracha na Amazônia e depois perderam tudo nos cabarés de Manaus; com o tempo, suas histórias passaram a me aborrecer, por que ele sempre repetia as mesmas histórias com pormenores diferentes, de modo que eu nunca soube ao certo se o que ele contava era o que ele realmente havia vivido, ou o que gostaria de viver, acho que no fundo nem mesmo ele sabia essa diferença, mas isso não importa, ele era só um velho fodido contando aquelas histórias para justificar sua miséria.

Nos dias de domingo ele ficava bebendo São João da Barra como os outros velhos no quiosque da praça, devia contar suas história para eles também, os velhos adoram ficar contando e ouvindo histórias; eu podia ficar vagabundando com os outros moleques pelo centro da cidade. É engraçado, um dia você se olha no espelho e não é mais uma criança, acontece de repente... Minhas velhas roupas cada vez mais apertadas e algumas já nem serviam mais, e eu ficava feliz porque sabia que estava crescendo; ser pobre tem dessas pequenas felicidades, você pode perceber que está crescendo por que suas roupas já não servem mais, e crescer é tudo o que importa: crescer, crescer e crescer.

Um dia, sem perceber, eu deixei de chamar o velho de meu avô; percebi o quanto ele era estranho, ele tinha um cheiro de coisa podre que fica guardada por muito tempo até perder o cheiro de coisa podre e ficar apenas um leve odor que você não sabe exatamente de que é, ele também bebia demais e fumava muito; eu ficava pensando que um dia ele ia morrer e o cigarro ia continuar acesso na boca dele, mas as vezes ele parecia que não ia morrer nunca.

O estranho é que o tempo passava e ele não envelhecia além do velho que já era, apenas seu rosto havia ganhado uma expressão severa e cansada de alguém que já havia visto todas as coisas possíveis de acontecer; às vezes eu ficava imaginando que ele não ia morrer, um dia apenas ele ia ficar quieto, mas tão quieto que não ia se mexer nunca mais, igual a uma estátua de olhos lisos que fica no meio da praça, estátua de um sujeito que era muito importante no passado e agora ninguém mais sabe quem ele foi, as pessoas passariam por ele e ninguém ia perceber que ele estava ali.

Uma noite quando eu acordei o velho já havia ido ao banheiro umas dez vezes, sua bexiga estava grande e ele não conseguia urinar uma única gota, o velho urrava e parecia querer espremer o próprio pau, lembro que chovia muito naquela noite, eu fiquei com medo que ele morresse ali na minha frente com aquela bexiga enorme, mas eu olhava para ele e ele parecia que não ia morrer nunca, então eu liguei para o hospital e eles mandaram uma ambulância, eu acompanhei o velho a noite inteira, houve um momento em que ele olhou para mim e viu alguma coisa na minha cara, naquela noite eu sei que, pela primeira vez, ele ficou feliz de um dia ter me tirado da rua e cuidado de mim. No hospital enfiaram um negócio estranho na uretra dele, que doeu até em mim; me disseram depois que teriam que operá-lo e próstata foi uma nova palavra que eu aprendi.

Em casa ele me contou que no hospital tiveram que meter o dedo no cu dele para examinar a próstata, alguma coisa que parecia ser uma lágrima se formou nos seus olhos, eu senti uma grande pena do velho, deu vontade de abraçá-lo, mas eu não saberia como fazer isso, eu nunca havia abraçado ninguém em toda a minha vida, além disso o cheiro do velho desfez o meu gesto. O meu desprezo por ele não era culpa minha, o velho era realmente asqueroso.

Engraçado, o ódio é que nem o amor, a gente nunca sabe ao certo quando começa, nem exatamente porquê, mas acho que eu comecei a odiar o velho quando passei a ter que dar banho nele e limpar sua merda. O velho havia deixado de contar histórias e pela manhã se formava ali na cama uma coisa amarela e pastosa de cheiro nauseante, eu não aguentava mais ver aquilo; se ao menos o velho morresse logo, mas eu olhava para ele e ele parecia que não ia morrer nunca.

Um dia eu cheguei em casa e o velho estava jogado no chão; ele estendeu a mão para mim e falou alguma coisa que eu não compreendi; naquele momento eu não senti nada, apenas um grande cansaço de todas as coisas e uma vontade de acabar com tudo aquilo; então eu bati na cabeça dele com uma peça que se soltara do armário; o sangue esguichou, eu bati de novo e de novo e de novo... com força, com loucura e com um certo carinho que ninguém entenderá, os olhos gelatinosos do velho dançaram na cara dele, e eu bati mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez... mas ele parecia que não ia morrer nunca.