Amigos do Fingidor

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Clube da Serpente em Manaus

Marco Adolfs



Tenho uma sala comercial no Millennium Center onde costumo meditar, escrever e pintar quando me dá na veneta. Um dia desses, ao entrar na tal sala, logo que abri a porta, tomei um susto enorme ao ver as costas de um homem sentado na cadeira da minha escrivaninha.

– Que é isto!? – gritei. – Quem é você!? – continuei, preparando-me para lutar.

Foi quando ele virou-se em minha direção e reconheci vagamente o rosto barbudo e o olhar esgarçado por entre aqueles óculos de aro grosso.

– Não estás lembrado de mim? – ele perguntou em espanhol, sorrindo na minha direção.

– Sim, sim...– comecei a balbuciar, aliviado do possível perigo.

– Sou o Julio – ele completou, timidamente. E continuou mais firme: – Julio Cortázar!

– Ah! Claro! – exclamei, abrindo um sorriso de alívio. Disse isso sem sequer pensar no absurdo todo daquele acontecimento.

– Como entrastes aqui? – perguntei-lhe, não querendo acreditar que ele era um fantasma.

– A casa de nosso pai tem várias entradas – respondeu, ainda sorridente. – Aquele que sempre percebe esse fato, torna-se um escritor capaz de estar em todos os lugares, viajando no tempo e no espaço – continuou.

– E você? Que fazes? – perguntou-me de supetão, acordando-me da minha letargia momentânea.

– Buscava justamente o bestiário – respondi, na hora, o que me viera à cabeça.

Sorrimos.

– E você? – perguntei de volta.

– Vim aqui para lhe dizer que pretendo reativar, nesta cidade quente e úmida chamada Manaus, o Clube da Serpente – disse Cortázar.

Engoli a seco.

– Mas achas que é possível existir aqui uma reunião de escritores malditos, com suas formas atravancadas de existir e fazer – desafiei.

– Perfeitamente possível – reafirmou Cortázar –, já que a forma de escrever está precisando dessas sacudidelas absurdas e malditas. – Não é mais possível uma literatura comportada e excessivamente clássica ou acadêmica em tempos de Internet, blogs – finalizou. Hoje o que prevalece é a não-linearidade das produções. Seja de que tipo for.

Cortázar falava de forma incisiva e eu resolvi sentar-me para enxugar o suor.

– Mas porque o Clube da Serpente logo aqui, em Manaus? – indaguei face ao absurdo da proposta.

– Morelli – lembra do Morelli?

Balancei a cabeça, lembrando. Cortázar continuou.

– Conversou comigo um dia desses e me disse que aqui, nesta cidade, o espírito parisiense de seus artistas é muito forte.

Ao relembrar de seu personagem Morelli, sorri e disse brincando.

– Ele não quis dizer espírito parintinense!? – tergiversei, brincando.

Cortázar ficou em dúvida.

– Como é que é? – perguntou, após alguns minutos de dúvida.

– Espírito de ilha! De Parintins!

Cortázar não sabia o que dizer. Com um olhar espantado, sua imagem foi desaparecendo, desvanecendo-se, lentamente do meu escritório. Desvanecendo-se como um fantasma que era.

Quando ele finalmente se foi pude raciocinar melhor sobre aquele acontecimento fortuito em uma das torres do Millennium Center, às quinze horas de uma tarde de sol.

De acordo com Cortázar, o ser humano, busca sempre o diferente. Uma criação aparentemente desordenada com notas dissonantes. A possibilidade concreta de conceber mundos paralelos onde tudo possa acontecer para justificar o fazer literário como um jogo. Tanto ele acreditou nisso que em seu livro Histórias de cronópios e de famas, dividiu o leitor em dois tipos: os "famas", aqueles que precisavam se ajustar às regras fixas de uma vida convencional, e os "cronópios" que gostam de uma forma livre e espontânea de viver. Rayuela, seu mais fenomenal romance, foi realizado para os cronópios.

Neste fabuloso romance quebra-cabeças, ele colocou em xeque a literatura e sua relação com a realidade. Um romance que se divide em três partes: a do lado de “lá”, a do lado de “cá” e, por fim, os “outros lados”, com Cortázar demonstrando a desintegração da cultura e da moralidade. Rayuela, ou O jogo da amarelinha, é a história de um personagem com o nome sugestivo de Oliveira e que, em determinado momento, deixa a riqueza de uma herança e a vida na América, por Paris. Um lugar que para ele representa o ócio criativo, a novidade artística e histórica, as festas eternas e a cultura em geral. Mas Oliveira não sai impune desse contato, pois descobre na Europa que tudo é em vão, já que tudo conduz ao nada. Para Cortázar, as coisas estão sempre por se fazer. Como deixa bem claro em seu A ilha ao meio-dia, sempre desejamos estar dentro de um avião quando em terra, e sempre desejamos a terra quando estamos dentro de um avião. Escrevendo na solidão de seu cárcere e produzindo seus livros quase confessionais, Cortázar finalmente publica em 1967 A volta ao dia em oitenta mundos, um livro insólito sobre a vida cotidiana de um escritor.

A vida de um escritor, que se vê inserido em um jogo ou labirinto, é sempre um romance interessante para um leitor cronopiano. E para este leitor nada é mais interessante que caminhar por uma literatura que apresente caminhos que se bifurcam. Caminhos que buscam uma solução, tanto para o livro, como para o escritor e mesmo para o possível e impossível leitor.

Quando terminei de escrever, puxei a persiana da sala, apaguei a luz, tranquei a porta e desci pelo elevador até o andar das lojas. Encontrei o Bacellar em uma mesa do café e tomei um com ele. Quando nos despedimos, após dar-lhe uma carona até o centro, voltei para a minha residência, acreditando que talvez o Cortázar pudesse gerenciar a literatura amazonense, influenciando, do além, para que existissem mais cronópios e menos famas, no meio.

Caricatura de Julio Cortázar: Baptistão.