Tenho uma sala comercial no Millennium Center onde costumo meditar, escrever e pintar quando me dá na veneta. Um dia desses, ao entrar na tal sala, logo que abri a porta, tomei um susto enorme ao ver as costas de um homem sentado na cadeira da minha escrivaninha.
– Que é isto!? – gritei. – Quem é você!? – continuei, preparando-me para lutar.
Foi quando ele virou-se em minha direção e reconheci vagamente o rosto barbudo e o olhar esgarçado por entre aqueles óculos de aro grosso.
– Não estás lembrado de mim? – ele perguntou em espanhol, sorrindo na minha direção.
– Sim, sim...– comecei a balbuciar, aliviado do possível perigo.
– Sou o Julio – ele completou, timidamente. E continuou mais firme: – Julio Cortázar!
– Ah! Claro! – exclamei, abrindo um sorriso de alívio. Disse isso sem sequer pensar no absurdo todo daquele acontecimento.
– Como entrastes aqui? – perguntei-lhe, não querendo acreditar que ele era um fantasma.
– A casa de nosso pai tem várias entradas – respondeu, ainda sorridente. – Aquele que sempre percebe esse fato, torna-se um escritor capaz de estar em todos os lugares, viajando no tempo e no espaço – continuou.
– E você? Que fazes? – perguntou-me de supetão, acordando-me da minha letargia momentânea.
– Buscava justamente o bestiário – respondi, na hora, o que me viera à cabeça.
Sorrimos.
– E você? – perguntei de volta.
– Vim aqui para lhe dizer que pretendo reativar, nesta cidade quente e úmida chamada Manaus, o Clube da Serpente – disse Cortázar.
Engoli a seco.
– Mas achas que é possível existir aqui uma reunião de escritores malditos, com suas formas atravancadas de existir e fazer – desafiei.
– Perfeitamente possível – reafirmou Cortázar –, já que a forma de escrever está precisando dessas sacudidelas absurdas e malditas. – Não é mais possível uma literatura comportada e excessivamente clássica ou acadêmica em tempos de Internet, blogs – finalizou. Hoje o que prevalece é a não-linearidade das produções. Seja de que tipo for.
Cortázar falava de forma incisiva e eu resolvi sentar-me para enxugar o suor.
– Mas porque o Clube da Serpente logo aqui, em Manaus? – indaguei face ao absurdo da proposta.
– Morelli – lembra do Morelli?
Balancei a cabeça, lembrando. Cortázar continuou.
– Conversou comigo um dia desses e me disse que aqui, nesta cidade, o espírito parisiense de seus artistas é muito forte.
Ao relembrar de seu personagem Morelli, sorri e disse brincando.
– Ele não quis dizer espírito parintinense!? – tergiversei, brincando.
Cortázar ficou em dúvida.
– Como é que é? – perguntou, após alguns minutos de dúvida.
– Espírito de ilha! De Parintins!
Cortázar não sabia o que dizer. Com um olhar espantado, sua imagem foi desaparecendo, desvanecendo-se, lentamente do meu escritório. Desvanecendo-se como um fantasma que era.
De acordo com Cortázar, o ser humano, busca sempre o diferente. Uma criação aparentemente desordenada com notas dissonantes. A possibilidade concreta de conceber mundos paralelos onde tudo possa acontecer para justificar o fazer literário como um jogo. Tanto ele acreditou nisso que em seu livro Histórias de cronópios e de famas, dividiu o leitor em dois tipos: os "famas", aqueles que precisavam se ajustar às regras fixas de uma vida convencional, e os "cronópios" que gostam de uma forma livre e espontânea de viver. Rayuela, seu mais fenomenal romance, foi realizado para os cronópios.
Neste fabuloso romance quebra-cabeças, ele colocou em xeque a literatura e sua relação com a realidade. Um romance que se divide em três partes: a do lado de “lá”, a do lado de “cá” e, por fim, os “outros lados”, com Cortázar demonstrando a desintegração da cultura e da moralidade. Rayuela, ou O jogo da amarelinha, é a história de um personagem com o nome sugestivo de Oliveira e que, em determinado momento, deixa a riqueza de uma herança e a vida na América, por Paris. Um lugar que para ele representa o ócio criativo, a novidade artística e histórica, as festas eternas e a cultura em geral. Mas Oliveira não sai impune desse contato, pois descobre na Europa que tudo é em vão, já que tudo conduz ao nada. Para Cortázar, as coisas estão sempre por se fazer. Como deixa bem claro em seu A ilha ao meio-dia, sempre desejamos estar dentro de um avião quando em terra, e sempre desejamos a terra quando estamos dentro de um avião. Escrevendo na solidão de seu cárcere e produzindo seus livros quase confessionais, Cortázar finalmente publica em 1967 A volta ao dia em oitenta mundos, um livro insólito sobre a vida cotidiana de um escritor.
A vida de um escritor, que se vê inserido em um jogo ou labirinto, é sempre um romance interessante para um leitor cronopiano. E para este leitor nada é mais interessante que caminhar por uma literatura que apresente caminhos que se bifurcam. Caminhos que buscam uma solução, tanto para o livro, como para o escritor e mesmo para o possível e impossível leitor.
Quando terminei de escrever, puxei a persiana da sala, apaguei a luz, tranquei a porta e desci pelo elevador até o andar das lojas. Encontrei o Bacellar em uma mesa do café e tomei um com ele. Quando nos despedimos, após dar-lhe uma carona até o centro, voltei para a minha residência, acreditando que talvez o Cortázar pudesse gerenciar a literatura amazonense, influenciando, do além, para que existissem mais cronópios e menos famas, no meio.
Caricatura de Julio Cortázar: Baptistão.