Allison Leão
Para Raimundo Pereira
I
Antes – antes eu era apenas curioso – eu ainda perguntava a meus irmãos a respeito de nosso pai. Mas eles quase nunca me davam informações. Os mais velhos diziam não saber e os mais jovens, não conhecer. Há alguns anos, vendo-me brincar com ferramentas, meu terceiro irmão ralhou comigo, mas depois se distraiu e falou que papai devia ter começado assim, brincando. Desde então tento construir a face de meu pai, às vezes muito movimentada, acompanhada de vários gestos largos, com braços que o tempo inteiro me convidam. Outras vezes, vejo-o calado, estreito. Mas em geral essas tentativas de pintura são interrompidas pelos ecos que vêm de algum lugar do quintal. Mesmo assim, não posso dizer que desconheço papai. Além do pouco que já me foi dito sobre ele, há essa presença sonora constante, toda noite, que, muito embora desarrume os quadros em minha mente, sempre me lembra que ele está próximo. Conheço-o de ouvido.
As pouquíssimas informações que tenho nasceram em momentos de distração de meus parentes. Mamãe, às vezes, colaborava com meu mosaico quando tinha algum gesto incomum, como no dia em que me pôs no colo depois de eu ter dado uma martelada em meu polegar. Ela me acudiu dando beijinhos e soprando meu dedo, como se sussurrasse algo ao polegar inchado, algo que não me cabia entender. E isso aliviou minha dor. Outra vez, não sei por que motivo, mamãe furiosamente recolheu algumas tábuas e com martelo e pregos selou a última passagem da casa para o quintal, onde papai trabalhava. Anos após, aqui escrevendo e rememorando a cena, fico a imaginar os sem-fim de paixão e ódio que aquela mulher um dia sentiu por meu pai.
Nessas fúrias, um pouco antes de meu nascimento ou quando eu ainda era um bebê, ela retirou das paredes e dos porta-retratos todas as fotos em que papai estivesse. Quer dizer, creio que tenha sido assim. Porque, dada a escassez de informações sobre meu pai, resolvi eu mesmo criá-lo em mim, assim como a tudo que pudesse ter relação com sua obscura imagem. Não há nada de extraordinário nisso. Primeiro porque o que me move não é criatividade, gênio criador, nada disso. Sou movido pela elementar necessidade de saber de meus ancestrais – especialmente sendo este meu mais imediato ancestral. Farei, afinal, o que faço segundo minhas obrigações em casa: vejo que as horas da noite avançam, e logo nada mais haverá de meu pai senão este inventário. E, além disso, porque, de certa forma, todos nós aqui em casa fazemos isso: não fomos criados por ele, criamo-lo dentro de nós. Uns imaginam um pai mau. Outros, um pai dócil. Mamãe, se hoje conserva amarguras, é porque um dia imaginou um homem que talvez nunca tenha de fato existido. Essa dispersão da certeza não se restringe à bruma que é meu pai. Minha primeira irmã sempre faz doces para mim e diz que me tem muito amor e que quando se casar vai querer que eu more com ela e que nunca homem nenhum vai ocupar meu lugar no seu coração. Me sufoca de afagos esta minha irmã. Já minha segunda irmã nunca perde uma oportunidade para arremessar qualquer objeto em mim. E diz que eu sou a pior peste que o Diabo já pôs na terra. Eu, o mesmo mesmo de sempre, amado por uma irmã, odiado por outra. Eu? Não: o eu de mim que elas imaginam haver.
De minha família, sou provavelmente o que menos sabe sobre papai. Os outros tiveram, ao menos, uma mínima convivência direta com ele. Não sei se é isso o que me mobiliza a escrever esta noite. Tinha lá minhas esperanças de um dia encontrá-lo, cara a cara, ainda que fosse nestes últimos instantes. Mas lá fora é só silêncio e escuridão. Se ambos são o que tenho, tudo o que eu construir hoje, mesmo que não seja a verdade pura, será a verdade minha, provisoriamente minha. A ignorância, nesta emergência de imagens, me autoriza mais que o conhecimento. Dos milhares de pais que meu pai pode ser, vou colando um braço de um, um olho de outro, uma perna de um terceiro. Meu pai será esse boneco de pano, feito de retalhos, que nascerá disso. Mas será meu pai.
Creio que o desconhecimento herdo-o de meu pai, que, assim com eu, não sabia de seus antepassados. Sua mãe talvez morrera quando ele tinha possivelmente três anos. Seu pai, parece que era um imigrante português do tipo que não vingou nesta terra. Ainda assim, meu avô viveu e morreu com arrogância sua pobreza. Nunca se casou. Não admitia a ideia de se juntar a uma cabocla. Conservava-se nele certa dignidade europeia. Entretanto, gerou vários caboclinhos nas empregadas de sítios nas cercanias onde trabalhava como caseiro, no extremo norte de Manaus. Um deles é meu pai. Vovô terminou seus dias naquelas distâncias, num pequeno terreno que recebera de seu patrão quando este vendera o sítio. Isso foi por volta de 1945. Ainda pôde ver a cidade se aproximar um pouco mais do Bom Futuro, nome desse esquecido fim-de-mundo. Talvez os hábitos de papai tenham tido origens atávicas...
* * *
Disso eu sei: papai era catorze anos mais velho que mamãe. Quando se casaram, ele tinha vinte e sete; ela, treze. Mas não houve cerimônia. Poderia já não ter tido pela falta de dinheiro nos bolsos de papai, mas houve outros motivos.
Papai não havia ainda despertado a paixão pela paixão, qualquer tipo de paixão que fosse. Vivia como pudesse. Arrumava sempre algum trabalho – ainda era jovem e forte – nas várias obras que se faziam à época na cidade. Não eram mais as grandiosas empreitadas realizadas quando meu avô chegara a Manaus, no fim do século XIX, mas a quantidade das obras compensava seu relativo acanhamento. A cidade alargava-se em várias direções, casa a casa, rua a rua – de barro, por vezes, mas diziam ser rua; de barro, às vezes, mas chamavam de casa. Papai, no entanto, não habitava essa cidade de barro. Morava na Praça 14, que era então, para meu pai, um lugar estratégico: não ficava tão longe de uma linha de bonde que levava ao Centro, era próximo de algumas periferias em que se podia arranjar trabalho, sempre tinha festas – consta que papai chegou a encarnar a Catirina numas festas de boi-bumbá na Praça 14 – e... e havia a filha da dona da pensão em que ele morava.
Minha mãe ainda deve guardar alguma beleza por debaixo de seus panos e de suas mágoas. Imagino como terá sido aos treze anos... O namoro começou numa das cerimônias religiosas do bairro, ou na verdade num dos arraiais que as sucediam. E minha avó, devota de Nossa Senhora de Fátima, levava mamãe a essas festividades para mantê-la em reto caminho. A partir de então, mamãe servia meu pai à mesa, no café da manhã, e na cama, de noite.
Papai havia conseguido um trabalho na reforma de algumas ruas do Centro. A cidade já trocava o calçamento de certas vias por asfalto, e naquela manhã papai arrematava as sarjetas da Rua Costa Azevedo. Uma viatura policial se aproximou e um dos soldados, com mesuras de sigilo, interrogou o encarregado pela obra, que não demorou a flechar meu pai com a ponta do indicador.
Na frente do delegado e também perante minha mãe e vovó, papai não negou que tivesse mexido com a garota, nem que isso ocorrera repetidas vezes, mas acrescentou que tinha boas intenções, tanto que continuava, mesmo secretamente, o namoro – faltava-lhe era coragem para comunicar tudo à minha avó. De repente, o que acabaria com ele tornou-se sua redenção, porque se de fato papai tivesse más intenções, teria abandonado mamãe e ido morar em qualquer outra pensão da cidade, que isso não faltava. O delegado achou pertinente o argumento, os policiais assentiram que estava correto, mamãe sorria aliviada de amores – mas mordia o sorriso, receosa de sua mãe. Vovó discordava com o corpo inteiro – tremia de raiva. Só retirou a queixa porque disse que o melhor castigo para mamãe seria, com aquela criança na barriga, juntar-se a meu pai. E na saída da delegacia mirou bem o raquítico casal, arrenegando-lhes com os olhos.
Só depois de alguns meses receberam uma visita. Um dos meus tios, irmão mais velho de mamãe, foi ao pequeno quarto que papai alugara, também na Praça 14. Ficou surpreso ao ver os móveis, ao ver comida em casa e que ao bebê não faltaria muita coisa quando chegasse. Papai percebeu o espanto de seu cunhado e teve emoções diversas. Primeiro, uma surpresa também, porque nem ele tinha computado o quanto acumulara naqueles meses. Havia diminuído consideravelmente a quantidade de cachaça que costumava ingerir. Não saía de casa a não ser para trabalhar, e o fazia a pé para economizar com transporte. Também abandonara as putas que lhe levavam alguma receita. E com essas economias presenteava mamãe. Trabalho a trabalho, papai comprava uma cama ali, um armário acolá. Mas adquiria essas coisas sem a noção de que elas fossem um conjunto. Se comprava uma mesa, não era uma mesa que se juntava a anteriores bancos – era uma mesa e apenas. A admirada reação de meu tio despertou em papai algo que até então não havia sentido – papai estava orgulhoso de si. Mas não demorou muito, depois que meu tio os deixou, para a raiva tocar meu pai. Afinal, a surpresa de seu cunhado também significava que, na imaginação alheia, papai não era pessoa confiável em assuntos de economia.
No dia seguinte, o irmão de mamãe repetiu a visita. Foi contar-lhes que sua mãe, minha avó, os presenteava com um terreno muito grande que acabara de adquirir em Petrópolis, um dos novos bairros de Manaus. Meu tio falou ainda que contara para vovó o bom desempenho de papai como chefe de família, que mesmo num pequeno quarto, ele não permitia que nada faltasse a mamãe, e que o bebê já estava antecipadamente provido. Vovó então juntou as boas notícias com a saudade que sentia de minha mamãe para recompensar os meses de desprezo ao casal. É verdade, disse meu já altivo pai, e é por isso mesmo que a gente não precisa de nada que venha daquela velha.
Meu tio percebeu o óbvio rancor da fala de papai e sugeriu voltar no dia seguinte, para obter uma resposta mais calculada. Apenas do jantar mamãe precisou para abrir os olhos de papai – de fato, morar naquele quarto seria muito difícil com a chegada de meu primeiro irmão. Papai não jantou naquela noite, surrado de ideias, mas teve de engolir, inteirinho, o prato da resignação.