Amigos do Fingidor

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Gabriel Garcia Márquez esteve lá

Marco Adolfs

A primeira ação que seus familiares tomaram, assim que Aureliano Filgueiras chegou de volta de sua longa viagem contando aquelas histórias todas que havia presenciado, foi aconselhar que ele procurasse um médico. A segunda foi interná-lo de vez numa clínica para tratamento psiquiátrico. Pois quando naquele dia Aureliano entrou em sua casa, rude, barbado e com o olhar ensandecido, relatando o que lhe acontecera quando do seu sumiço da sua casa por dois meses e meio, todos pareceram escutar atentamente o que dizia, embora já desconfiados de que o homem, que já não era considerado normal na cidade em que vivia, enlouquecera de vez. E quando Aureliano, não satisfeito por ter apenas os ouvidos domésticos como platéia, passou a propalar aos quatro cantos do bairro onde morava, indo de casa em casa, as suas estórias, não só todos se preocuparam com a possível insanidade do pobre coitado, como também trataram de proteger suas crianças de um acesso de loucura mais descabido.

Agora, deitado e sonolento naquela cama de uma enfermaria do hospital psiquiátrico local, após ter tomado um forte ansiolítico para se acalmar, o jornalista Aureliano Filgueiras recordava, como em um sonho, todas aquelas coisas que haviam acontecido em sua vida quando, a convite do hoje famoso e cultuado escritor Gabriel Garcia Márquez, foram, os dois, pisar o distante município de Uari, então apenas uma cidadezinha com poucas ruas enlameadas e casas mal ajambradas, localizada às margens de um lago de águas negras e misteriosas. Aureliano lembrava então de tudo, tim-tim por tim-tim; com Gabriel a seu lado, de quando esteve lá. Os dois tentando descobrir a verdade em meio à mentira; e a fantasia, em meio à realidade.

Tudo começou, naquela cidadezinha perdida nos confins do mundo civilizado, um dia depois do término de uma tal festa do Divino, quando Aureliano e Gabriel – após terem presenciado, em plena madrugada misteriosa, homens virando boto e mulheres tendo ataques histéricos, a mergulhar no lago para serem fecundadas pelos tais encantados –, viram também, eles mesmos, cadáveres saindo das profundezas da terra para reclamar do que ainda estava pendente em seus corações carcomidos e proclamar o que desejavam de melhorias para aquele mundo corrupto do qual haviam se afastado temporariamente. Foi a partir desses momentos que a possível loucura de Aureliano se estabeleceu e os olhos de Gabriel se arregalaram. Principalmente quando, naquela cidadezinha amazônica e por esses motivos ditos sobrenaturais e inexplicáveis, a voz da cidade (uma série de quatro alto-falantes postados no centro de um terreno localizado bem em frente ao cemitério) havia sido tomada por um outro locutor, de uma voz poderosa, tonitruante e sobrenatural. Uma voz que se apresentou dizendo:

– Amados irmãos de sangue! É chegada a hora da verdade ser dita e propalada aos quatro cantos desta cidade do pecado. É chegada a hora de o que foi escrito há milênios se tornar verdade. Segundo as escrituras, aqui, em Uari, se dará o começo do fim e o fim do começo. Chega de tanta corrupção de corpos e almas. "Nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados!" Diz a Bíblia em I Coríntios,15...

Aureliano Filgueiras, portanto, chegou a sua casa, naquele dia, contando tudo isso e muito mais. Quanto ao jovem Gabriel Garcia Márquez. Esse, como vocês já devem saber, escreveu vários romances fantásticos, ganhou o prêmio Nobel de literatura e, hoje, quando pode, passa os dias da festa do Divino no distante e ainda incompreensível município de Uari, localizado em um dos lagos escondidos do alto Solimões, no estado do Amazonas. Tentando ainda entender tudo aquilo. Logo ele, que foi um dos encantados por uma mulher de longos cabelos e de olhar luminoso, que todos diziam sair das águas daquele lago profundo em noites de lua cheia.


Caricatura de Gabriel Garcia Márquez: Fraga.