Amigos do Fingidor

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Uma história da Índia

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Marco Adolfs


Em um tempo perdido no tempo – numa aldeia perto da cidade de Harappa – morava uma menina chamada Vainavi. Essa menina, cujo nome significa ouro, nasceu para realizar uma profecia. A história de sua vida começou em uma noite de tempestade, durante o período das grandes monções na Índia.

Nessa noite de chuvas intensas, seu pai, Ashok, o grande construtor de barcos, apenas esperava o desenrolar do nascimento da criança, entre baforadas de fumo e uma calma de faquir. Os estertores da dor de parto da mulher Vaani não o incomodavam nem um pouco. E Vaani, cercada de outras mulheres, olhava para o céu chuvoso, desejando que aquilo tudo terminasse o mais rápido possível. Aquele novo filho esperado era o décimo primeiro de uma prole só de meninos. Bem que uma menina sempre fora desejada pela mãe.

Quando o líquido escorreu por entre suas pernas e a cabeça daquele novo ser começou a aparecer, Vaani pensou em Ganesch, o deus elefante. Pois, aquele dia era consagrado aos poderes imortais de Ganesch. E foi quando os relâmpagos mais luminosos riscavam o céu, sob os estrondos e a chuva mandados por Shiva, que o grito da pequena Vainavi se fez notar na terra dos brâmanes. E foi um grito tão agudo que todos pensaram que Ganesch havia iluminado aquele ser com o poder do bramir de todos os elefantes da Índia. Seu pai logo levantou, sentindo e sabendo que aquela menina seria especial entre todos os homens. Mas como acreditar nisso? Uma menina?!

Mas Ashok lembrava do sonho que tivera na noite anterior, quando Ganesch aparecera para lhe dizer e profetizar o que aconteceria com o novo ser que iria nascer. “Essa menina será uma redentora para todos os que aqui sofrem seu carma. A todos ela irá mostrar um caminho.” Mas como uma menina poderia fazer isso acontecer, no meio daqueles homens todos? – Pensou Ashok. Porém, nada disse. E esperou.

Quando a menina Vainavi nasceu, Ashok pareceu ver o semblante perfeito de Krishna lhe sorrindo por detrás dos panos que cercavam a manjedoura. E, quando, após as chuvas terem cessado, todos os elefantes que existiam nas redondezas se aproximaram de sua casa, para, em uníssono, levantarem suas trombas emitindo aquele som infernal, percebeu que o sonho que tivera talvez fosse uma verdade dos deuses.

Após a limpeza da pequena Vainavi e após todos os incensos terem sido acesos, agora, como agradecimento pelo nascimento da menina, uma Puja, a oração necessária, deveria ser feita sob as bênçãos de Rendrapu, o sacerdote daquela aldeia.

A cerimônia mais comumente realizada para esses momentos iniciou-se então aos pés do leito da mãe. Com a palavra Om emitida vigorosamente por Rendrapu, saudando a menina-elefante. Denominação de todos os que passaram a lhe conhecer. Principalmente devido àquela estranha reverência feita pelos elefantes. Mas, quando Om, a palavra do nascimento do mundo, de tudo o que existe e existirá para sempre, foi pronunciada por Rendrapu, ele, em seu íntimo, sabia a verdade daquele nascimento.

O velho sacerdote, por trás de suas grisalhas barbas, já esperava por isso e pelo que teria de fazer. Pois aquele nascimento da menina-elefante já havia sido profetizado por quase todos os sacerdotes brâmanes ao longo de todo o rio Ganges. Desde sempre, e em um número bastante expressivo de reencarnações e profecias. Por isso, aquela vibração da palavra Om transcendia o início, o meio e o fim de todas as coisas existentes, mais do que nunca. Pois trazia, para perto daquele leito, todas as divindades existentes ao redor, para reverenciar a menina que iria mudar o destino do mundo de sofrimento em que todos ainda estavam imersos.

Rendrapu sabia que nos cultos védicos, os pedidos mais solicitados aos deuses são vida longa, bens materiais e filhos homens. Mas agora ele sabia também que tinha que se render a uma outra verdade ditada por Shiva e pelas outras divindades. Ele vira toda essa verdade, em seus momentos de êxtase religioso, imerso nas brumas escuras de uma caverna repleta dos odores de milhares de incensos. Viu quando Agni, o Pai dos Homens e Deus do Fogo e do Lar, o avisou que uma menina seria gerada sob o fogo da vida da mulher Vaani e do varão Ashok, da tribo e aldeia perto de Harappa. E que essa menina, com o apoio de Indra, o que rege todas as a guerras, iria comandar um exército contra os invasores vindos do leste. E que Varuna, o Deus Supremo, rei do universo, dos deuses e dos homens, estaria ao lado dessa menina-elefante até o final do tempo medido.

Em outro momento de seu êxtase Rendrapu, porém, recebeu a vinda de Ushas, a Deusa da Aurora; de Surya e Vishnu, Regentes do Sol; e de Rudra e Shiva, deuses da tempestade; para que, como guia, orientasse a menina a crescer sempre em busca da paz. Principalmente obedecendo à natureza do mundo. Mundo configurado nas plantas e animais. A começar pelos elefantes, passando pela vaca, o rato e a serpente. Todos esses especialmente adorados e reverenciados pela menina que seria chamada de Vainavi – aquela que escreve a verdade e a justiça com a espada de ouro dos homens.

E a menina então cresceu entre os homens; e aprendeu a lutar e guerrear como todos. Quando os invasores do leste vieram finalmente, ela estava montada em um elefante e comandava um exército de heróicos guerreiros. Os invasores foram então expulsos e nunca mais voltaram. Vainavi havia cumprido a profecia. Até que, idosa, com cento e quatro anos e rodeada de tataranetos, ela desencarnou, ainda lembrando de tudo.

Hoje, uma das encarnações de Vainavi vive como professora dos homens, exercendo o seu doutorado em Nova York com o nome de Ellora Neall. Nas noites em que não consegue pegar no sono, a professora Neall então vê, no teto de seu quarto, as vidas e batalhas que sempre viveu. E quando sonha, Ganesch, o Deus Elefante, lhe aparece para lembrar-lhe do imenso amor que ela deve ter por todos os seres.