Inácio Oliveira
Lembro como se fosse hoje o dia em que encontrei o livro. Era uma manhã chuvosa de maio, as águas da chuva haviam inundado as ruas, não houvera aula naquele dia e a turma pôde sair mais cedo; eu encontrei o livro que a enxurrada trouxera até o tronco de uma árvore, era um calhamaço velho e gasto, de estranha tipografia. No caminho para casa eu li o primeiro capítulo.
Em casa não tínhamos livros, a não ser livros didáticos que a escola nos dava. Até aquele momento eu não sabia que podia ler; enquanto avançava na leitura percebi que um homem que sabe ler pode possuir todas as coisas.
A narrativa era simples como uma história que acontece todos os dias, porém havia alguma coisa que me escapava o sentido; eram histórias curtas que se justapunham umas às outras formando uma rede cíclica de acontecimentos.
Anos depois quando reli o livro percebi que as histórias já não eram mais as mesmas; me ocorreu que talvez o livro possuísse uma infinita combinação de inumeráveis leituras. À medida que eu lia o livro, ele se tornava cada vez mais complexo e eu mesmo estava diferente.
A cada releitura era com fascínio e entusiasmo que eu abria o livro, o eterno espetáculo de uma literatura infinita.
Com o tempo pude vislumbrar os surpreendentes signos que compunham seu enredo, sem no entanto abarcar-lhe completamente o significado; tentei até uma inútil e frustrada exegese do livro, mas alguma coisa sempre me escapava.
O misterioso livro parecia conter todo o fluxo da História e remetia à totalidade da experiência humana; obra de um deus ou um demônio. Durante os anos da minha vida estive ocupado em ler o livro e decifrar seus estranhos signos; hoje posso perfeitamente compreender que certas coisas não podem ser compreendidas.
Estou velho e cansado, mas toda vez que leio o livro, eu olho para o mundo mesquinho ao meu redor com um vago sentimento de despedida, a leitura me ausenta, e depois eu sempre sinto uma estranha saudade de ter estado nalgum lugar em que eu nunca estive, nem nunca estarei.