Amigos do Fingidor

segunda-feira, 22 de março de 2010

O veneno de Zola

Marco Adolfs


O escritor Émile Zola nasceu em Paris a 2 de abril de 1840 e morreu, provavelmente assassinado, em 1902. Dizem que foi por ter inalado o monóxido de carbono de sua lareira que, segundo consta, tinha sido obstruída por pedras. Seria uma vingança daqueles que foram responsabilizados por Zola, no seu escrito J´accuse, em defesa de Alfred Dreyfus? Eles, sentindo-se atingidos pela pena de Zola, armaram, na surdina, uma forma de envená-lo? Ninguém pode afirmar ao certo. Mas, talvez esse provável envenenamento tenha começado a acontecer quando dessa sua carta aberta J'acccuse (Acuso), endereçada ao então Presidente da França, Félix Faure.

Na carta, publicada na primeira página do jornal parisiense L'Aurore, de 13 de janeiro de 1898, Zola acusava o governo francês de simples e rasteiro anti-semitismo, por julgar e condenar, superficialmente, o capitão Dreyfus, oficial do exército francês, por traição, em 1894. Nessa carta, Zola foi tão preciso, que acabou por provocar a revisão do processo e posterior reabilitação do oficial Alfred Dreyfus, em 1906.

Mas aqui, neste momento, paro. Paro para dizer que talvez o veneno de Zola não tivesse sido aquele que ele inalou, mas sim esse antídoto escrito (J´accuse) que ele inoculou nas veias de um governo fraudulento e corrupto, em busca da reabilitação de um corpo social e moral. E digo mais: que isso só seria possível partir – pelo menos naquela época autoritária e conservadora ao extremo – do mesmo escritor que criou a Escola Naturalista, já que essa corrente literária, criada por Zola, propugnava que o escritor elaborasse, não um simples romance, mas uma análise científica pormenorizada do ser humano, da moral e da sociedade de sua época, em busca de soluções, podemos dizer, científicas.

Esse era o veneno de Zola. Sua poção mágica. Seu antídoto contra a corrupção de valores naturais, vigentes dentro daquela sociedade autocrática. Após a publicação do artigo J'accuse, Zola foi processado e condenado a um ano de prisão. Não foi o primeiro sábio a ser preso (e depois obrigado a ingerir um veneno) e não seria o último. Mas, ao saber desta injusta condenação, Zola exilou-se na Inglaterra. Após a sua volta, quando já não corria o risco de ser preso, publicou, no La Vérité en marche, vários artigos sobre aquele caso.

Mas, para terminar, é preciso elucidar um pouco mais a ação literária dessa tal escola naturalista, criada por Émile Zola. O Naturalismo nasceu em 1866, com o romance de Zola Thérèse Raquin; romance de concepção inovadora, já que estava impregnado por estudos científicos e experimentais da época. Nesse romance, ele inseria teorias como o darwinismo, o evolucionismo e o determinismo científico. Na verdade, com Thérèse Raquin, romance que inaugurou a escola naturalista, iniciava no meio literário o chamado “romance de tese”. Um “estudo fisiológico e psicológico do ser humano em um contexto”, segundo Zola. Um romance naturalista, portanto. De alguém que, por conhecer a fisiologia de um corpo natural e social, poderia encontrar facilmente antídotos contra suas “corrupções”. E tanto ele propôs essa corrente que, em 1871, desenvolveu aqueles seus romances vitais para essa defesa; a série Les Rougon-Macquart, sobre os quais ele deu o subtítulo de uma história natural e social de uma família sob o Segundo Império.

Seus principais romances dentro dessa escola são: O Ventre de Paris (1873), A Terra (1887), Nana (1880) e Germinal (1885). Considerada a grande obra de Émile Zola, Germinal demonstra muito bem toda a estética naturalista. O romance descreve as condições de vida dos trabalhadores de uma mina de carvão. Para obter dados e escrever esse romance, Zola passou dois meses trabalhando e vivendo como mineiro na extração de carvão de uma mina da França. Morou com os mineiros e comeu e bebeu nos mesmos locais, para se familiarizar com seus modos de vida. Émile Zola sentiu na pele e na alma como era o trabalho sacrificante dos mineiros. Desde a dificuldade para empurrar pequenos vagões repletos de carvão, até o calor e a umidade no interior de uma mina. Viu de perto aquele trabalho enfadonho e insano que era realizado, todos os dias, para extrair o carvão. Viveu até a promiscuidade das moradias daquela gente; seus baixos salários e a fome que de vez em quando os assolava. O homem Zola conheceu a fundo a fisiologia e a psicologia daquela gente, antes de denunciar o seu sofrimento.

Zola ainda escreveu uma outra série intitulada As três cidades, sobre problemas religiosos e sociais. E, atraído pelo socialismo – posteriormente evoluindo para uma atitude messiânica e profética em relação à trajetória do ser humano –, escreveu uma terceira série, Os quatro evangelhos. Essa ficou incompleta, porque, os seus algozes, no silêncio das brumas, viam que, da chaminé em sua casa estava sempre a sair fumaça. Sinal de que o homem estava fervendo em seu laboratório particular de letras. E esses infelizes acharam que o maldito escritor talvez estivesse maquinando novos artigos compremetedores e reveladores. Então – tudo indica isso –, podem ter pensado que seria fácil matar o homem, sem provocar suspeitas comprometedoras, com aquela fumaça sendo desviada. Assim, apagariam o seu fogo.

O que eles não poderiam esperar é que os escritos de Zola se eternizariam e que ele permaneceria queimando seus artigos e livros através dos tempos. Servindo de exemplo e inspiração, sempre, para artigos e livros verdadeiros, contra as mentiras dos poderosos. Dos que acham que tudo podem. Esse J`accuse e esses livros todos, eram, portanto, os seus antídotos. O veneno de Zola. Que, até os dias de hoje, perdura no ventre desses eternos abomináveis que se arvoram como preconceitusos e donos de suas mentiras. Para eles, existem os articulistas e romancistas da verdade, com suas poções de antídotos contra a arbitrariedade.

Ilustração: Retrato de Émile Zola, por Édouard Manet (1832-1883).