Amigos do Fingidor

domingo, 7 de março de 2010

Inventário em tempo sobre meu pai (2/3)

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Allison Leão

II


O terreno em Petrópolis era muito grande. Mas também era muito longe. Não havia transporte próximo. Para ir à cidade, onde havia trabalho, papai tinha de caminhar por picadas feitas no matagal, até chegar ao bairro da Cachoeirinha para apanhar um ônibus. Mas a família ia aumentando, e por isso distância foi algo que papai teve de ver cada vez mais com outros olhos e andar com outras pernas.

A cada filho que nascia, meu pai, mesmo sendo ainda o trabalhador inexaurível, via a casa, que ele erguera praticamente só, precisar de mais e mais condições – os móveis baratos envelheciam sem substituição, as tábuas que papai adquirira em segunda mão apodreciam. Quando começou a faltar dinheiro para comida, papai vendeu uma parte do terreno. Mas ainda restava-lhe um bom bocado de terra.

Trabalhar até não poder mais não adiantava. Papai então passou a pensar numa maneira mais eficaz de recuperar as perspectivas da riqueza. Mas pensar toma tempo, e por conta disso certo dia papai reuniu umas poucas coisas: cadernos e lápis, e se despediu da família. Além dos parcos apetrechos, papai só ia com a roupa do corpo. Estava de partida para resolver a vida de todos. Só retornaria de sua viagem quando tivesse a mais clara ideia de como ficar rico. Mamãe já vinha acompanhando as mudanças de papai, mas não podia se concentrar nelas, pois se encontrava no nível das alimentares preocupações. Infelizmente, o quintal tinha mais mato que fruteiras. Perto da cozinha, a maior árvore do terreno, uma pitombeira, a despeito de seu tamanho, não dava frutos. Alguns vizinhos sentenciaram que se tratava de uma pitombeira-macho. Mas papai deixava para mamãe os últimos ganhos, que, segundo ele, não acabariam antes que uma boa ideia lhe ocorresse, afinal, seu destino era ser rico, estava no seu sangue europeu, no projeto não cumprido de seu pai. Sem dizer para onde ia, sumiu porta fora.

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Meus irmãos eram seis até então. Por isso, cada semana que papai passava fora, era multiplicada por seis na paciência de mamãe. Mas a fé foi seu consolo. Na época, os missionários da Igreja Metodista chegavam para dirimir essas angústias, pelo menos as espirituais, o que já era uma grande ajuda. A pele rosada e os olhos claros dos americanos traziam certa paz a alguns moradores de Petrópolis, que trocavam o catolicismo pela novidade. Um dos pastores lembrava uma imagem católica de Jesus Cristo, alguém comentou. Mas meus irmãos tinham a angústia estomacal sempre a recordar, sempre a cutucar. Não sei o que mamãe fez durante os meses que papai passou longe, mas sei que nem sempre dava dinheiro porque, na mesa, ainda faltava comida necessária para seis. Sete com mamãe.

No bairro havia o Seu Sahde, o comerciante que mais prosperava, à custa de cobrar juros de quem pendurava conta. Diziam que estava no sangue de Seu Sahde essa tendência a enriquecer, que pelo nome ele devia ser turco. Mas os olhos azuis punham dúvida na verdadeira procedência do comerciante. Mamãe deve ter aberto conta na mercearia de Seu Sahde.

O mais novo de meus irmãos não aguentou a penúria. Houve certamente alguma dor, e talvez grande, quando ele morreu, mas algum alívio também. Criança morrer não era fato raro; e francamente aumentava as chances de os vivos viverem. Alguns vizinhos e fiéis da Igreja Metodista compareceram ao velório. Mas na alta madrugada só permaneciam mamãe e os cinco filhos restantes, ela cochilando, eles dormindo à luz de lamparinas. O transporte do mirrado corpo estava quase acertado – talvez um dos pastores cedesse o carro da Igreja. O cemitério ficava longe, era o Santa Helena, no bairro de Santo Antônio, do outro lado da cidade. Havia o Cemitério de São João Batista bem mais próximo, mas muito mais distante, porque não era para qualquer defunto.

Quando, certa hora da madrugada, mamãe acordou e não viu o pequeno caixão no centro da sala, automaticamente contou os demais filhos, que se espalhavam pelo chão. Neste ponto não sei se ela achou que tudo fora um sonho e que encontraria os seis ainda dormindo ali, ou se acreditou que tudo havia sido um pesadelo e que a falta do caixão significava que sempre um próximo filho tinha lugar a preencher no meio da sala. O certo é que ao contar cinco, seu desespero lhe estancou qualquer choro e lhe sufocou, de início, qualquer movimento. Então, morrer ainda não era o pior?

Não havia ninguém na casa, além dela e de meus cinco irmãos. Não os acordou. Bateu-lhe o irracional medo de que na tentativa eles não respondessem. A precária iluminação das lamparinas não lhe mostrava a quem recorrer. Então, simplesmente, ajoelhou-se e passou a orar. Orava sua pobre oração, repetitiva de clamores e medos, uma batida monótona, pois assim aprendera com os missionários norte-americanos. Orava um pouco, parava e olhava para o centro da sala na esperança de que as preces houvessem sido atendidas. E depois tornava a orar. Mas, fazendo um contratempo em seus clamores, uma outra batida vinha do quintal. Mamãe, com tanta curiosidade quanto medo, tomou uma das lamparinas e foi ver o que acontecia. Seus passos avançavam luz no quintal escuro, uma luz trêmula. E foi tremendo que mamãe viu papai abrir a terra sob a estéril pitombeira a golpes de picareta. Uma raiva engolia-lhe o peito e certamente muitas palavras que deveriam ser ditas como se também fossem picaretadas mamãe quis dizer. Porém, outro passo abriu mais luz na escuridão e revelou o caixão de seu filho, cujo rosto já se salpicava da terra que voava da escavação de papai.

Que é isso, homem?, perguntou mamãe. Estou enterrando nosso filho, não vê?, respondeu papai. Nosso filho vai ser enterrado no cemitério, que nem gente, disse a mulher. Onde tu andavas, homem? Todo mundo morrendo de fome! Onde tu andavas? Por que enterrar a criança aqui? Mamãe tinha mais perguntas do que cabem numa boca de uma vez. Mas papai continuava a cavar.

Até que enfim, eu tive a ideia, falou meu pai, sem cessar com a picareta. Mamãe ouvia e resguardava o caixão. Mulher, disse meu pai, esquecendo que teu filho morreu, esquecendo que foi de fome, esquecendo até que tu já quiseste morrer pra não ver a mesma coisa acontecer com os outros, esquecendo isso tudo, o que tu não consegues esquecer? Mamãe disse que não conseguia esquecer essas coisas – ela não tinha, portanto, como responder. Papai continuou: por isso, eu tive que me afugentar da própria cabeça. Por isso, eu vi teu sofrimento de longe sem sair de perto. Por isso, eu habitei esse quintal nesses meses todos, pra ver a fome de vocês me apertar a vontade de ter uma ideia sem me apertar o remorso de ainda não ter tido uma. O pior foi ter visto o menino morrer. Ter te visto chorar calada. Não ter nem como levar o menino pra ser enterrado, lá no Santa Helena. Mas aí veio a ideia.

Mamãe, a essa altura, desabraçava o caixão para desabraçar enfim a espera e a esperança que ainda tivesse por meu pai. Esses meses papai estivera no quintal, ruminando mato e ideias. Homem que se fez bicho porque quis. Na escuridão do matagal, acompanhou de ouvido as desgraças de nossa casa, silencioso, como um lobo espreita a presa. Papai espreitava a ideia, que só surgia agora. Se não tivesse surgido, nem acompanharia ao cemitério o filho morto. Embora seus ódios crescessem, mamãe quis saber o que isso tinha a ver com enterrar a criança em solo pagão, pois tinha lá seus resquícios católicos.

Eu não estou só enterrando nosso filho, disse meu pai enquanto continuava a cavar, estou também plantando a semente de nossa fortuna. Pensei muito no que fazer pra ganhar dinheiro. Mas tudo já foi feito. Só ganha dinheiro quem já tem. Então, pensei em alguma coisa nova, pro futuro. Sempre o futuro na cabeça. Pobre só ganha dinheiro no futuro. Quando ouvi teu choro por não ter como levar nosso filho para o cemitério, vi que esse era o negócio. Nosso quintal é enorme, vamos fazer nele o cemitério dessa banda da cidade. Quem vai atravessar Manaus pra enterrar alguém, se agora tiver um cemitério tão perto?

Quando papai acabou de discursar e cavar, não encontrou mais o caixão nem mamãe. Mas encontrou-os ainda a poucos metros dali. Mamãe quis gritar, quis chamar por ajuda, mas ela já estava sobre um cemitério, onde ajuda já não há. Vai cuidar de quem está vivo, que eu cuido de quem morrer, disse seco papai. Mamãe lembrou dos cinco filhos que dormiam dentro da casa e com uma curiosidade que era medo foi se certificar de suas permanências.

De manhã, quando os vizinhos se juntaram para acompanhar o caixão, não o encontraram mais, apenas deram de cara com papai, na sala, convidando a todos para prestarem as homenagens ao anjinho, no quintal, ao pé da sepultura. Olharam para mamãe, como que pedindo explicações, mas ela estava derrotada. O que ela ia fazer, desenterrar o filho? Ora, de fato, no meio da aparente sandice de papai, havia argumentos imbatíveis: os cemitérios eram mesmo muito longe. Por isso, todos entraram no quintal, um pouco para rezar pelo morto, e muito para ver se era verdade que papai enterrara ali o filho. Papai aproveitou a oportunidade para anunciar que a partir de então não era mais necessário que os mortos de Petrópolis fossem para tão longe. Seu filho ele enterrara sem audiência porque, segundo disse, era assunto pessoal. Estava inaugurado o Cemitério Luso-Brasileiro de Petrópolis.

Papai achou que esse “luso” emprestaria ares de distinção ao cemitério. Todos lembrariam que eram ainda um pouco europeus. Mesmo que essa lusitanidade estivesse a sete palmos.

Nas semanas seguintes, papai capinou o mato, plantou mudas de tucumanzeiro nos limites do cemitério, embelezou seu empreendimento. Passava o dia e muitas vezes entrava pela noite cuidando disso, especialmente em lua cheia, quando tinha alguma claridade para trabalhar. Quando entrava em casa, dificilmente encontrava mamãe acordada. Mas, ainda assim, procurava-a na cama. Raras vezes ela cedia. O cheiro de terra, de mato, de lua e do pressentimento de morte a incomodavam. No entanto, papai chegava do trabalho faminto de vida, sexo e comida. Tanto que mamãe engravidou mais uma vez.