Allison Leão
III
O Cemitério Luso-Brasileiro de Petrópolis estava muito bonito, mas lhe faltavam os mortos. A densidade demográfica do bairro, bem como sua taxa de mortalidade, ainda não eram suficientemente favoráveis aos interesses de papai. E, além disso, as pessoas ainda desconfiavam da ideia de ter tão perto seus mortos. Nas vezes em que havia um óbito, papai ia até a casa da família do morto e oferecia seu pacote: transporte – papai adquirira uma carroça –, ornamentos, choro, velas. Mas a desconfiança vencia e o enterro se dava no Santa Helena ou no São Francisco, que também era muito distante, no bairro de São Lázaro.
Papai não dormia mais em casa. Passava as noites no seu cemitério. E quando sentia o cheiro da morte saía à cata de quem tivesse falecido. Quando chegava à casa onde se velava o defunto, papai não oferecia mais os serviços. Ficava pelos cantos do velório, calado. Sua presença já significava sua proposta. Quando muito se propunha servir café para as poucas pessoas que na alta madrugada permaneciam a velar o morto. Ele, papai, não arredava pé do velório. Fitava o defunto com um misto de afeto e desejo.
Essas poucas pessoas foram ainda muito menos quando morreu Seu Sahde. Lá estava papai cercando o caixão quando a mulher do turco lhe disse que o enterro, por recomendação do próprio marido, deveria ser feito no Cemitério Luso-Brasileiro de Petrópolis. Desde que o desconto fosse mesmo muito bom. De tão feliz, papai quase deixou que saíssem de graça seus serviços. De manhã cedo, soltou fogos, distribuiu cumprimentos a todos os que – e a maioria foi de curiosos por ver o cemitério – compareceram ao enterro de Seu Sahde.
O bairro, a princípio, dividiu-se. Uns achavam que de fato o preço compensava o incômodo de ter seus mortos tão perto. Ora, se até o miserável do Seu Sahde havia pedido para ser enterrado no cemitério de meu pai... No entanto, uma grande parte dos moradores de Petrópolis não gostava dos métodos pouco ortodoxos de papai: soltar fogos e demonstrar alegria não combinava com a tristeza de espírito que comumente estampamos ante a morte. Os que discordavam de papai, por uma infeliz coincidência, eram justamente os que menos morriam, e, ficando vivos, tinham incontestável poder de decisão sobre os mortos, optando por sepultá-los sob os tradicionais métodos, nos longínquos cemitérios. Papai começou a amargar seu ostracismo fúnebre.
Mas não desanimou. Nos anos seguintes acompanhou todos os enterros da cidade. A qualquer cemitério. Em um mesmo dia chegava a ir a quatro, cinco enterros. Ia na sua carroça, sempre levando os inseparáveis cadernos e lápis. Enquanto o padre ou o pastor dizia as últimas palavras a respeito do defunto, lá estava meu pai, aplicado, disciplinado, sem perder um lance do evento. Havia se desligado completamente da família. Passou a morar em seu cemitério. Entrava e saia do cemitério pelo lado oposto ao da casa, na rua de trás. Não lhe ocorria como a mulher estava se virando para sustentar os filhos. Se bem que da vida de minha mãe eu sei tanto quanto meu pai a sabe. Mas um dia, ela simplesmente me entregou dinheiro e pediu que eu o contasse, que registrasse a quantia, fizesse os cálculos das despesas, acompanhasse os gastos, comparasse com o orçamento e no fim do mês prestasse contas a ela. Ao que parece, ela já se cansava bastante em seus afazeres profissionais, os quais desconheço. Meus irmãos também têm lá suas tarefas. Tornei-me, portanto, o escrevente da casa. E assim, mesmo sabendo pouco sobre os acontecimentos subterrâneos de minha família, sou eu quem lhes registra ao menos os da superfície.
A meu respeito, sobre meu nascimento sequer, papai não chegou a tomar nota. Não soube de meus olhos azuis e meus cabelos claros, que nada condiziam com seu semblante de mestiço nem com o de mamãe. Certamente, se um dia tivesse me visto, relacionaria isso ao fato de que agora ele era um grande empresário e que sua verve europeia finalmente se estampava em seus descendentes. Consta que entre os ibéricos da Galícia não era raro o nascimento de loirinhos sardentos.
* * *
Conforme já escrevi, mamãe, talvez num dia de lembranças boas ou más, quando eu ainda era muito pequeno ou um pouco antes de eu nascer, deu fim a todas as fotos de meu pai. E também quando eu era criancinha fechou a última passagem que dava acesso ao cemitério. Mas antes já havia proibido a cada filho que tentasse ir visitar papai. Disse-nos que papai enlouquecera e que se fôssemos lá ele nos enterraria vivos.
Às vezes, à noite, durante toda a minha infância e agora na minha juventude, ouço os golpes da picareta ferindo a terra. Ninguém sabe o que papai faz por lá, já que, até anteontem pelo menos, os únicos enterros que seu cemitério havia recebido haviam sido o de meu irmão e o de Seu Sahde, o que já faz muito anos. De dia papai saía, lia os necrológios e ia aos enterros, ainda com caderno e lápis. As pessoas não se importavam. Papai passou a ser visto como um louco. Ninguém entendia que ele era um visionário. Foi convidado a ser coveiro, dado estar sempre sujo de terra e conhecer como ninguém os funestos procedimentos. Papai sorriu ironicamente do convite e apenas disse, sou um empresário. E estas foram suas únicas palavras nos últimos anos. Papai, depois que se entregou a seu negócio, tornou-se homem de não falar. Isolou-se no seu silencioso mundo. Ao redor de seu cemitério, ergueu uma altíssima cerca viva, feita de tucumanzeiros justapostos. O tronco espinhoso das palmeiras sempre impediu a entrada de qualquer curiosidade. Não há quem conheça os segredos de meu pai.
Mas ontem de manhã cedo uma parte deles entrou em nossas narinas. O Petrópolis amanheceu com o miasma mais podre que nem se pode imaginar. E nas proximidades do Cemitério Luso-Brasileiro eles eram ainda piores. Não foi nada difícil ligar uma coisa a outra: naquela madrugada os demais cemitérios de Manaus tiveram túmulos violados. Todos os corpos enterrados desde aquele longínquo dia em que papai acompanhou o primeiro enterro de caderno em punho haviam desaparecido. Os anteriores a isso, papai os desprezou.
A polícia e os técnicos compareceram ontem à nossa casa para verificar se procedia a suspeita de papai ter furtado os cadáveres, os ossos e o pó que lhe interessavam. Procuraram uma portinhola por onde papai entrava e saía do seu cemitério, mas ela havia desaparecido. Encontraram apenas a carroça de meu pai, e sem o fatigado cavalo que o acompanhara esses anos todos. Mamãe relutou em permitir que se reabrisse a passagem há tantos anos por ela fechada. Mas os homens lá estavam sob ordem de lei, e mamãe nada pôde fazer.
O odor era insuportável. Mesmo de máscaras, os mais sensíveis desmaiaram. Os que permaneceram de pé não criam no que viam e no que não viam: um belo campo limpo, bem cuidado, aqui e ali pitombeiras-machos e palmeiras exóticas e regionais. E mais nada. Além das bem zeladas lápides de meu irmão e de Seu Sahde, com o mármore como que novíssimo, não havia nenhum outro túmulo ou vestígio dos mortos sequestrados – a não ser o putrefato odor persistente corroendo a atmosfera. Mas a terra sequer revirada estava: um extenso gramado cobria o solo do cemitério. Um dos técnicos sugeriu que se trouxessem as escavadeiras. Mas um outro prudentemente observou que a quantidade de metano no ambiente poderia causar uma enorme explosão, se uma faísca se fizesse. Decidiram então isolar uma grande área do bairro. Evacuaram a população, que fugiu tapando o nariz.
Fizeram perguntas a minha mãe, a meus irmãos e a mim sobre meu pai. Mamãe e meus irmãos só souberam responder o que toda a vizinhança sabia sobre meu pai: quase nada. E eu nem isso. Flagrei-me assim, sem saber nada de meu pai. Sem ter convivido de fato com ele, nunca lhe dei falta. Acostumei-me a sabê-lo só pelo som surdo das inexplicáveis picaretadas.
Os técnicos resolveram dinamitar o Cemitério Luso-Brasileiro de Petrópolis. Uma explosão controlada. Se papai estiver escondido com seus mortos por lá, vai pelos ares junto com eles. Eles já estão mortos mesmo e papai é um criminoso perigoso, dizem as autoridades, mais perigoso que um homicida, porque é como se ele tivesse matado todas aquelas pessoas mais uma vez.
Pedi que me deixassem aqui uma última noite. Fiquei atento aos sons que pudessem vir do cemitério, mas foi a noite mais silenciosa que já presenciei na minha vida. Assim tive tempo de compor este inventário em tempo sobre meu pai. Parei várias vezes e fui olhar o cemitério através da passagem reaberta. Mas está tudo tão calmo, como em qualquer cemitério.
Onde estará meu pai? Vizinhos cogitam que, por debaixo do Cemitério Luso-Brasileiro de Petrópolis, papai tenha construído outro e outro e outros cemitérios. Porque só assim caberiam lá os 40 mil mortos desaparecidos naquela madrugada. Mas os vizinhos têm imaginação muito fértil. Ainda assim, fico na dúvida.
Amanhece o dia. Ouço os sons dos técnicos que se aproximam.