Amigos do Fingidor

segunda-feira, 15 de março de 2010

A tentação de Flaubert

Marco Adolfs



O escritor francês do século XIX Gustave Flaubert escreveu pouco, mas atingiu o alvo do que pretendia, revelando um pouco da estupidez humana daquela vida que via e vivia. Revelando as tentações que assolam todo ser, ele revelava as suas. Numa reação ao romantismo sonhador, Flaubert jogou as cartas do realismo na cara de uma burguesia hipócrita e de um provincianismo cego. Cínico, irônico e visionário, ele viu naquela sociedade burguesa que se formava no século XIX, o embrião da dissolução moral e fragmentária que se instalaria de forma definitiva e como verdade quase absoluta, nos séculos XX e XXI, no seio das sociedades consumistas. Era o vazio sendo preenchido pelas novas necessidades estampadas nas ruas. Era a necessidade de escape da alma, aprisionada no tédio de uma província do interior. Necessidades burguesas chamativas e necessidades provincianas clamativas. Quando Flaubert então tocou nas feridas que via, o governo francês da época resolveu levá-lo a julgamento. Acusado pelo seu romance de estréia Madame Bovary (1856) – considerado um livro “execrável sob o ponto de vista moral” –, Flaubert teve que puxar para si a defesa de uma mulher que traiu o marido (assunto do livro), já que os juízes queriam saber quem tinha sido a pessoa na qual ele teria se inspirado para compor a personagem. Quando respondeu “Madame Bovary sou eu!”, ele desnudou ainda mais os aspectos burgueses e provincianos atacados. E disse uma verdade que viveu na pele, já que era filho de um provinciano rico. As tentações de Emma Bovary eram também as dele.

A estória de Emma Bovary, que trai o marido como uma tentativa de escapar da vida medíocre e tediosa que vivia, revela as tentações de fundo criativo (a imaginação do outro) que todo ser humano, homem e mulher, sofrem para escapar da insatisfação e da mediocridade. Uns fogem através do corpo; outros, através da alma. Ou das duas formas, simultaneamente. Emma, sucumbindo à tentação, entregou o corpo como veículo para a sua alma ansiosa. Ela poderia estar se iludindo, mas escapava. Flaubert entregava a sua alma (como escritor) para fugir também, sucumbindo à tentação de ter que revelar tudo isso através da sua escrita. Madame Bovary é o romance de um amor impossível que é deflagrado por uma sensação de que algo estava mudando naquela província e no mundo do escritor. Uma mudança provocada pelos novos tempos e suas inerentes tentações de rompimento com um mundo velho. Quando Flaubert escrevia sobre o drama de Bovary, ele sentia que estava provocando também um escape literário profundo.Uma transcendência na literatura que iria provocar um rompimento em prol do realismo exacerbado e do modernismo iminente das outras gerações. Se a burguesa provinciana predominava, Emma Bovary havia encontrado uma saída através do exercício lascivo de traição a esse mundo. E Flaubert, agarrado à saia dessa madame, vinha experimentando, por seu turno, uma literatura de rompimento com este mesmo mundo. Nada é mais necessário para uma alma que se deseja livre do que escapar de uma província. Mesmo que seja uma província literária. E olha que muitos de nós até hoje tentamos isso. Mas, para se entender essa tentação de Flaubert, de não só ser uma Emma Bovary revolucionária, mas também um escritor de tiro certeiro no escape perfeito, é preciso fazer-se uma aproximação de suas outras obras literárias. Obras próprias de quem sentia-se preso a um destino provinciano odioso e constantemente criticado, volto a repetir. Flaubert propalava aos quatro cantos que era um estudioso da estupidez humana, colecionando episódios de insensatez e burrice. E, segundo ele, a estupidez era mais visível na província.

Na sua obra A tentação de Santo Antão (1874), essa inteligência limitada também foi tema. O livro é uma alegoria da alucinação de um ser humano que deseja a santidade. Onde o deserto, no qual vagueia o pretenso santo, fica repleto de “personagens” ou “fantasmas”. Antão busca a perfeição de um santo enfrentando os seus demônios internos, a Luxúria e a Morte (na verdade Eros e Tanatos). Flaubert e a personagem Bovary também enfrentavam isso. Se as projeções mentais de Antão fazem a sua loucura de santo; as projeções mentais de Flaubert fazem a criação do autor. O desejo de Flaubert era ser não só Emma Bovary, mas também Santo Antão. Ser Emma Bovary é ter a liberdade da vida luxuriante. Ser Santo Antão é ter a liberdade de uma ascese purificada. Como todo escritor percebe quando escreve, esse é o motor que os move. Para Flaubert, ao dizer ser Emma Bovary, tornava-se, naquele momento, uma metáfora de alguém que procurava ressuscitar uma literatura morta. Era extremamente urgente (como hoje, caros escritores e leitores amigos) fugir-se das garras de um provincianismo tacanho. De um regionalismo da alma que nos tolhe como uma cerca enraizada (imposta constantemente) em torno de uma memória que funciona em um circulo vicioso. Um eterno e circular olhar para o próprio umbigo; presos a raízes profundas de árvores mortas. Entre a luxúria e a morte, como as tentações de Santo Antão em seu deserto, devemos optar pela liberdade. A grande tentação a ser realizada por um escritor (e leitor) deve ser a mesma de Emma Bovary e Santo Antão: fugir de seus fantasmas e algozes, tornando válidos todos os meios para atingir-se a libertação.


Ilustração: Baudelaire e Flaubert, ambos censurados – caricatura de Baptistão.