Amigos do Fingidor

segunda-feira, 8 de março de 2010

A metamorfose de Kafka – o homem

Marco Adolfs



Um dos autores que mais impressionaram o leitor que existe em mim, a ponto de nunca sair da minha cabeça, foi o escritor checo Franz Kafka. Uma impressão que acredito ter estado e ainda estar também na cabeça de milhares de pessoas que conheceram a vida e a obra desse escritor. Pessoas que também vivenciaram, e vivenciam, os dias de nossa absurda existência. Envolvidos com processos pessoais, metamorfoses em suas vidas; e vivendo um cotidiano onde tudo parece poder acontecer. Mas as perguntas que ele fez, ao longo de sua obra, ainda estão para ser respondidas com mais clareza, pela consciência de cada um desses que tomaram conhecimento do escritor Kafka, para que assim se possa ter a certeza de que estamos realmente perdidos num emaranhado de situações loucas e vivendo na obscuridade de sermos passíveis de dominações várias.

Kafka nasceu em Praga, em 1883, filho mais velho do rico comerciante judeu Herrmann Kafka, e de Julie Löwy. Cresceu sob três fortes influências culturais: a judaica, a checa e a alemã. Culturas de uma forte tradição de controle e determinação de almas. Ainda mais naquela época. Tanta gente já escreveu e falou sobre esse tal de Kafka que o próprio nome do homem acabou por se tornar um símbolo de tudo que denota o absurdo de uma situação, digamos, autoritária, de comando de nossas miseráveis e humildes vidas, e que foge do nosso controle e entendimento. Mas, para entender uma obra como a de Kafka, é preciso entender, antes, o homem que a formulou e o contexto cultural onde nasceu e viveu por sob a capa do escritor. Pois Kafka, em sua originalidade e defesa, não foi um só, mas sim, dois. Um homem que tinha que se metamorfosear em escritor e um escritor que tinha que se metamorfosear em homem.

Todos os dias, até a sua morte, Kafka foi assim. Um Gregor Samsa que acordava para a vida e via a impossibilidade de viver como um ser “normal” em si. Mas, o que posso dizer ainda, sobre essa dicotomia existencial, é que todo escritor visceral é um ser assim, dividido entre o sonho e a realidade. Tendo que se transfigurar a todo o momento como um equilibrista com fome de viver e ser aceito em dois mundos: o do escritor e o dos homens. E muitas vezes, dependente de “um pai” ou “padrinho” que edite a sua obra e o redima de seu inferno íntimo. Por tudo isso, o homem Kafka passou. E não se submeteu a nenhuma forma de poder, embora, em seu íntimo, tenha tido um pouco de medo do que essa sua verdade pudesse provocar.

Ser antiautoritário não é fácil em um mundo onde tudo e todos parecem exercer um autoritarismo de controle de corpos e de almas, através da manipulação de medos e culpas, principalmente. E talvez tenha sido por causa disso que Kafka tenha pedido ao seu amigo Max Brod para queimar, em determinado momento, a sua obra inédita. Pois Kafka, o homem, lutava contra tudo isso a partir do centro de sua própria vida particular. Na verdade, se não fosse isso, sua obra talvez não tivesse passado de uma neurose particular. Mas, ele teve a sorte de exercer o talento de um escritor para exorcizar seu inferno íntimo. A sua metamorfose diária era exercida assim. Sua raiva contra sistemas de controle, simbolizados pelo pai opressor que teve e pela burocracia da vida controladora na qual estava imerso até o pescoço, o fez oscilar internamente. Mas, ou ele se ajustava como tentou até o fim o homem Kafka, ou ele agia contra, como fez, meio indeciso, o escritor Kafka. O fato é que precisava respirar. E os únicos poros abertos eram os de sua escrita. E só o absurdo para explicar outro absurdo. Alguns dizem que não, achando no racionalismo exacerbado a explicação para tudo. Mas, Kafka não via assim. Seu racionalismo adquiriu uma defesa de ficções sublimes.

O homem precisava esconder-se no escritor diletante que desabafava através de estórias urdidas na solidão, a metamorfose que ocorria em sua alma. Talvez Kafka tenha até pressentido o fato de que, como homem, ele era um inseto até certo ponto medroso, mas, em muitos momentos, corajoso. Medroso, pelo fato de que tinha que se esconder através da capa de uma escrita, e corajoso por ter a oportunidade de solapar, de forma sutil e brilhante, os alicerces dos poderosos cretinos da objetividade instalados no poder. De uma sociedade com centenas de milhares de formas de dominação do ser. A metáfora da libertação de qualquer situação de um ser é sempre uma espécie de metamorfose. Quando aquele que rasteja cria asas e voa. Quantos de nós já não enfrentamos esse processo de transformação? E quantos de nós já não acordamos um dia sentindo-se como um inseto rastejante? E quantos de nós ainda estamos presos a uma espécie de processo inexplicável, ou a uma burocracia de caminhos inalcançáveis? Essas perguntas, Kafka as respondeu em seus livros. E respondendo em seus livros, ele respondia a si mesmo. Respostas, diga-se de passagem, carregadas de desesperança. Essa era a sua luta para se afirmar como alguém sensível às convenções autoritárias e alienantes de uma vida burguesa que procurava se estabelecer na alma de todos. A tirania do poder impessoal, invisível e alienante. Mas, o artista dentro do homem Kafka lutava como uma crisálida plena de possibilidades de vôo. Por mais de curta duração que fosse esse vôo. E toda essa tensão se transfigurava nos escritos de Kafka: em América, A Colônia Penal, O Processo ou O Castelo e também nos pequenos contos que escreveu. E isso tudo, como não poderia deixar de ser, Kafka exercitou solitariamente, tentando se libertar de qualquer um que viesse tolhê-lo em seus reais propósitos. Descobrindo uma forma, e uma fórmula, de como “dizer tudo”. Era o escritor dizendo para o homem continuar existindo.

Homem de vida emocional conturbada, Kafka deve ter sentido sempre uma sensação de abandono e de baixa auto-estima (sofrimento a partir de seus conflitos com o pai) que ficou sempre difícil para ele manter uma convivência normal com quem quer que fosse. Tanto que contraiu quatro noivados e conviveu, torturando-se, com colegas burocráticos que não lhe diziam muita coisa. Por isso, Gregor Samsa – esse Cristo abandonado e esquecido em um quarto pelo pai ausente – apareceu como personagem-símbolo do homem-escritor-artista Kafka, como tal. E todos os seus outros personagens, Georg Bendemann, Joseph K. e K. foram também emblemáticos desse desamparo do mundo controlado pelos fortes invisíveis. Força essa da qual Kafka, como homem, procurou sempre se libertar. Todos os seus personagens procuravam uma saída, e Kafka, o artista, a encontrou metamorfoseando-se em escritor após as horas chatas e amargas de seu expediente na Companhia de Seguros de Acidentes de Trabalho, de Praga. Mas, o homem Franz Kafka terminou os seus dias tuberculoso, ainda tentando se ajustar a um mundo que parecia lhe repelir. Em 1923, doente em Berlim, conhece Dora Diamant, enquanto escreve “A Construção”. Em 1924, ao retornar a Praga, pede a mão de Dora em noivado e o pai dela recusa o pedido. Nesse ano, sai o seu conto “Um artista da fome” e ele, que definhava, morre, em três de junho, em um sanatório de Viena. Era o fim de seu processo de vida. E o início de sua imortalidade. Processo arquivado, a sua metamorfose iria se completar de forma definitiva.

Caricatura de Kafka: Baptistão.