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do outro lado da calçada, as crianças cirandavam, quando ele tentava atravessar a rua. ao ver que se aproximava, saíram correndo. mas o rosto do velho gordo, de barba branca, permaneceu na calçada, indiferente, desafiador.
deteve o ímpeto de esmigalhar com o pé aquele riso irônico, que o atormentava desde a infância, de menino que não conhecera o pai. decidiu deva-lo para casa, pendurá-lo na parede do quarto.
assim, todas as noites, antes de cair rendido pelo cansaço, xingava aquele rosto contraditoriamente venerado e odiado.
um dia, o rosto libertou-se do escárnio a que lhe impusera, durante muitos anos. foi quando descobriu o quanto estava preso àquele rosto, de riso aparentemente irônico. uma nova e estranha solidão o abateu, devorando-lhe as entranhas.
(Adrino Aragão)