Marco Adolfs
Um dia desses voltei a pensar em Rimbaud. Aquele menino-profeta-mestre do século XIX e que Mallarmé muito bem soube ser o mensageiro de uma ética rebelde de todos os viajantes das letras e que passam (sempre) uma temporada no inferno. E aí fui transportado no tempo. Lembrei então que a primeira vez que dissequei o “menino” Rimbaud – e olha que ele já passou por várias dissecações por parte de minha consciência – eu passava uma temporada em Curitiba. Foi nos anos 80. Vivia entre poesias e com a ilusão embrionária de sentir-me um possível escritor, além de um acadêmico. Fazia muito frio na capital e eu tomava o meu café quentinho no lugar onde estava hospedado, totalmente alheio ao que acontecia lá fora. Como um dândi perfeitamente periférico, desses que olham para o próprio umbigo, folheava um livro: a biografia de Rimbaud.
Mas, terminado o desjejum, resolvi olhar para fora. Olhar para a rua lá embaixo. Eu me encontrava na cobertura de um edifício de vinte andares; quase acima do bem e do mal. Foi quando o meu olhar ficou imediatamente úmido pela visão que tive. E percebi que o líquido poderia até congelar, tal o frio da visão que tive. Mas o que vislumbrei lá embaixo? Vi uma rosa de meninos; rosa das ruas; rosa de meninos abandonados. Pois estavam todos enrodilhados; entremeados uns nos outros; como pétalas. A formarem, no espaço circular em um canteiro de uma praça lá embaixo, uma rosa corporificada. Protegiam-se do frio imenso que fazia nas almas dos homens. Aí eu desci do meu pedestal intelectual e conversei com os meninos. Foi quando fiquei sabendo da existência de um adolescente – entre aqueles – que compunha, nos seus dezenove anos, poemas fulgurantes e visionários, de uma beleza estranha. Lembro de um que procurava atingir cimos do pensamento inviolado da sua pretensa liberdade. Ele me mostrou o papel escrito a lápis e que logo no seu primeiro poema começava assim: “Sou uma dor abandonada na esquina; nascida no limbo desta cidade cretina...” Saí dali pensando que, talvez, Rimbaud estivesse entre eles. Fiquei matutando que muitos daqueles rebeldezinhos seriam retirados da rua, ou pela morte ou pela poesia.
Depois me vi andando a esmo pelas ruas de Curitiba, ainda com o livro sobre a vida de Rimbaud nas mãos. A existência de Rimbaud como tal é a existência do que Claudel dele disse: “um místico em estado selvagem”. Seria como aquele menino? Foi talvez com essa frase que eu tentei ver Rimbaud naquele dia. Mas que poeta pode nascer de uma rosa de carne e sangue congelados? Talvez possa! Quem sabe? Mas Rimbaud me perseguia pelas ruas como um menor abandonado ao relento. Pois, como alguém já o disse: “o rimbaudismo é universal. Sua fosforescência atravessa a barreira das línguas”. E por que não outras barreiras!? Mas lá ficavam eles para trás – os meninos do frio do inferno –, no lugar onde, talvez, antes, fossem pastos verdejantes de esperanças mil. O vento a vergar flores singelas, nos campos do Paraná. Mas Rimbaud continuava em minhas mãos. A perpetuar um certo comportamento e certa insolência rimbaudianos? Vamos imaginar o “Bonne pensée du matin”. Arthur Rimbaud representa uma terrível bomba programada em todas as ruas da existência. Como aquele menino maltrapilho, um raio, uma arma, um heroísmo. Próprio daqueles corpos maltrapilhos que trafegam nas ruas. Pura poesia marginal de quem vive no inferno. É preciso sofrer muito para conceber isso. Esse combate com o anjo infernal e do amor feroz das Musas, semelhante ao do louva-a-deus que devora o macho. Eles estão sendo devorados nas praças. Eles vivem a feiúra, quando ela é bela. Nisto está toda a tragédia! É a fabulosa herança dos mortos na miséria. Que todos nós vivemos.
Mas Arthur Rimbaud foi um milagre nesta Terra miserável, um fenômeno de ordem sobrenatural, por sua precocidade assustadora e pelo mistério de seu destino, que permanece impenetrável como seu gênio mesmo. Deixando de lado o que ele possa ter carregado enrustido em sua alma. Uma fragilidade angelical, talvez. E, Rimbaud inexoravelmente renunciou à literatura aos dezenove anos. Qual o motivo? Não interessa. Sabe-se que na segunda fase de sua breve existência, realizou longas e fantásticas caminhadas, percorrendo a Europa e os oceanos, dando-se a mil e uma ocupações para ganhar a vida, aprendendo uma porção de línguas, para malograr, finalmente, na África, onde cumpriria o resto de seu ciclo infernal em atrozes condições e morrer como um mártir aos trinta e sete anos. Um poeta brasileiro pode chegar a isso? Quando ele foi para o continente africano, tinha algumas economias de que se orgulhava: aproximadamente quatrocentos francos. Uma vida diferente descortinava-se para sua poesia. Os horizontes mágicos da Abissínia e de Zanzibar ofereciam-se a seus delírios. Mas perdeu-se nos caminhos por ele mesmo traçados entre Aden e Djibuti, Zeilah e Harar, só iria abandonar aquele inferno ao ser alcançado pela morte. Assim foi a vida de Rimbaud. Naquele tempo. E hoje? É claro que eu o vi em um deslumbre delirante naquele dia frio de Curitiba.
O destino de Rimbaud foi ser só, terrivelmente e sempre só. Ele era ardente; um temperamento inflexível e difícil. Mas o menino que era, prosseguia infame na visão de todos. Deixara na África alguns amigos que o choraram com sinceridade. Mas antes ele brigara com quase todos os que o conheceram (Izambard, Verlaine, todos os parnasianos, Alfred Bardey etc.) e abandonara os outros (Delahaye, Nouveau). Quando morreu conciliou com todos. Seus acessos de raiva esquecidos. Os meninos da praça de Curitiba – especialmente aquele poeta-menino-marginal – também se enraiveciam com a incompreensão dos outros. Caminhei um pouco mais pelas ruas silenciosas daquela capital estranha e, quando estava me dirigindo para o Shopping, a fim de almoçar, me deparei novamente com o nosso marginal. Estava pedindo uns trocados e cheirando um frasco de cola. Quando me viu até sorriu. Lembro que naquele momento perguntei qual era o seu nome. E ele me disse se chamar Artur! Era Rimbaud ressuscitado!?
Aí Rimbaud saiu das ruas dessa existência, onde andava solitário e quase esquecido, para ser alçado à mente de todos os que passaram a amá-lo como tal. Na poesia, o nome de Arthur Rimbaud brilhava como uma estrela de primeira grandeza. E todos os outros passaram a comentar sua grandiosidade. Dele disse o grande André Gide: Rimbaud era para mim como um poeta demoníaco, um “poeta maldito” entre todos e gostava de o ser, com a ajuda do álcool, o “famoso gole de veneno”, que ele nos convida a beber e que eu degustava com prazer, mais embriagante que qualquer outro vinho, que não podia convir senão aos fortes.
Alguém já disse existirem muitos Rimbaud neste mundo, e que seu número crescerá sempre. “Creio que, no futuro, o tipo Rimbaud substituirá o tipo Hamlet e o tipo Fausto.” Acho que foi Henry Miller quem disse isso. E que Rimbaud é uma curiosa mistura de audácia e timidez. Ele tem a coragem de se aventurar lá onde nenhum branco jamais pôs os pés, mas ele não é capaz de enfrentar a vida com pouco dinheiro. Não tem medo dos canibais, e sim dos brancos, de seus semelhantes.