Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Defesa imunológica do corpo, organização social e doenças



João Bosco Botelho

 

             Há muito tempo, desde os primeiros registros, tanto nos escritos religiosos quanto nos laicos, sabe-se da estreita relação entre saúde e doença e o modo como as sociedades se organizaram. Hoje, basta comparar o tipo de doença, no mesmo período, nos países industrializados e nos subdesenvolvidos, para a certeza da importância da saúde como indicador social.

             Depois da publicação dos trabalhos do pesquisador Susumi Tonegawa, o ganhador do Nobel da Medicina de 1987, esclarecendo algumas dúvidas de como ocorre a variação dos aminoácidos dos anticorpos produzidos pelos linfócitos B nada mais foi como era antes. Tonegawa demonstrou que quando o linfócito B se desenvolve, segmentos do seu material genético são selecionados e misturados para formar novos genes, dando origem a milhões de sequências variadas de aminoácidos, capazes de efetuar com mais competência a defesa do corpo humano contra as agressões micro e macroscópicas vindas do meio ambiente.

          Como consequência imediata dessas pesquisas, é possível afirmar que pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel e capaz de desenvolver durante a vida uma infinidade de combinações gênicas adaptativas. Para que este mecanismo biológico ocorra na sua plenitude, é indispensável que o corpo disponha da mais importante fonte de energia – o alimento.                                                                                   

               Deste modo, se dissolveram como castelo de areia à chuva, por meio da demonstração científica, os pressupostos étnicos racistas alimentados pelos interesses dos diferentes matizes ideológicos. Isso significa que as crianças subnutridas dos países pobres não poderão competir, em igualdades de condições, com outras dos países industrializados, onde a oferta de alimentos, indispensável para a maturação do genoma, é feita em níveis calóricos adequados.

                É indiscutível que estamos nos afastando rápido, nos últimos anos, da medicina cartesiana classificatória, representante do conhecimento contido num espaço hermético e inquestionável, para colocar a doença no contexto mais abrangente e complexo das relações sociais.  

                Os conceitos positivos da imobilidade da saúde e da doença foram substituídos pela convicção da existência do equilíbrio dinâmico entre ambas, onde ter a doença não significa, necessariamente, estar doente. Essa tendência está nitidamente clara a partir do século 19, quando o médico abandona o conceito restritivo da saúde e adota o da normalidade, provavelmente motivado pela melhor compreensão da fisiologia experimental, em plena efervescência, nos trabalhos de Claude Bernard.  

               Esse primeiro momento, ficou impregnado da necessidade de explicar como tudo funcionava nos corpos. Como o mecanicismo dominava os meios acadêmicos, a máquina foi escolhida como o modelo ideal. O corpo humano passou como num passe de mágica a ser comparado a um grande relógio, onde as doenças eram somente desajustes na engrenagem.

              Entretanto, essa construção teórica restritiva não encontra suporte na História. A certeza da importância do sociocultural produzindo doença já estava presente nos livros laicos e sagrados escritos há milhares de anos nas culturas que se desenvolveram na Mesopotâmia, Egito e Índia.

          Naquelas épocas, os legisladores laicos e religiosos utilizaram os poderes disponíveis e interferiram nos hábitos coletivos das populações, para evitar a doença. Assim conseguiram determinar, ao longo dos séculos que se seguiram, modificações na cadeia epidemiológica de muitas doenças.  

               O exemplo de fácil verificação é o câncer do colo uterino, com baixíssima prevalência entre as judias. A explicação é dada pela cirurgia da fimose feita, obrigatoriamente, nos homens judeus no sétimo dia após o nascimento. Com isto, o prepúcio fica livre e facilita a higienização impedindo que o vírus Epstein‑Baar, relacionado com a etiologia do câncer do colo uterino, se aloje no esmegma (secreção espessa, caseosa, malcheirosa, formada por células epiteliais descamadas, que se encontra, sobretudo, em torno da genitália externa) da glânde masculina.  

          O câncer do pênis é o outro lado da mesma questão: acomete homens com fimose. O Nordeste brasileiro, como todas as outras regiões do mundo subdesenvolvido, onde o homem enfrenta enormes dificuldades de sobrevivência, ainda apresenta uma das maiores prevalências de câncer do pênis no mundo.