Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Morte rejeitada: sempre a vida

 

João Bosco Botelho

 

            As ações humanas, transformando a natureza, para controlar a dor, são imperativas. Estão ligadas direta e indiretamente aos mecanismos neuroquímicos endógenos autorreguláveis. As dores, física e mental, determinadas pela ferida, na carne dilacerada no acidente traumático ou na morte da mulher amada, são sempre temidas. Têm sido, ao mesmo tempo, a inspiração dos poetas e a arma preferida da insanidade para aqueles que exigem o apagar dos sentidos, a fim de limitar, pelo pavor, o confronto das ideias no exercício da livre consciência.

            Diversas circunstâncias, do homem chorando a perda do amor ao suplício do torturado pelas ditaduras de todos os matizes, determinam o alerta dos sentidos e modificações significativas em todos os órgãos, em níveis moleculares, hoje inacessíveis.

            Uma das características mais intrigantes é como a dor altera a noção do tempo. Suportar o desconforto doloroso, por um minuto, é como estar sofrendo na imensidão do infinito. Durante a manipulação dentária, quando a pequena broca alcança o nervo sensitivo, as sensações cerebrais são indescritíveis. Ao contrário, a hora de prazer corre como um breve instante.

            Por essa razão, é impossível manter, durante muito tempo, a dor fulgurante. De pronto, todos os sentidos natos atiçam para evitá-la ou os sentidos são apagados, pela inconsciência forçada, para aliviar o desastre biológico.

            Por outro lado, quando a vítima da tortura associa, de maneira persistente, alguém ao suplício da dor, a lembrança do algoz faz a ansiedade alcançar um nível difícil de suportar. A morte, antecipada pelo suicídio, pode significar a única saída.

            A espécie humana elabora uma substância específica para diminuir as dores e tornar a vida possível: endomorfina (morfina produzida no próprio organismo) autorrequisitada pelas trocas biológicas, independentes da vontade, para modular a dor.

            Em complemento, existem moléculas especiais, acopladas às membranas celulares, no sistema nervoso central, dotadas de especial receptividade aos derivados dos opiáceos naturais e sintéticos, utilizados como alucinógeno e analgésico.

            A incrível disseminação das drogas proibidas também não é um problema social exclusivo. A sedução exercida pelo consumo ilegal é diferente em cada pessoa. Está contida na individualidade material molecular e é transmitida geneticamente. Não é possível tantas pessoas, espalhadas no mundo, algumas coagidas por métodos brutais, continuarem desafiando o controle social sem coerência biológica.

            As investigações realizadas nos símios responderam, favoravelmente, a essa assertiva. Os animais produzem substâncias, em nível molecular, para atenuar todas as circunstâncias exteriores e interiores capazes de determinar a dor.

            Se considerarmos a dor determinada pela morte dos entes queridos, a crença no renascimento pode ser também entendida como mecanismo atávico, formado ao longo do processo de hominização, como um dos mais extraordinários mecanismos para entender a morte como parte da vida e, assim, minorar o sofrimento.

            Esse pressuposto é reforçado a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos assírios e babilônicos, onde se tornou possível esclarecer o intrigante sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento.

            A crença no renascimento após a morte continua sendo um dos mais valorosos artifícios da ficção, para atenuar a morte rejeitada.