Beto
Vianna
Tarde de domingo na
peixaria Moronguetá, num bairro chamado Felicidade, quase à beira do rio Negro,
de frente pro encontro das águas, ladeado pelo escritor, poeta e dramaturgo Zemaria
Pinto, por sua bela, índia e poeta companheira Tainá, pelos colegas de Livro de
Graça na Praça e por minha filha Tábata, carregando no ventre o neto Aruã, debruçado
sobre o prato de matrinxã (meio sem-vergonha, diga-se) com pimenta murupi, baião
de dois, farinha de mandioca brava e suco de taperebá com gelo e açúcar. A cerveja
expulsa do meu cardápio pessoal, graças a uma colelitíase que demandara laparoscópica
retirada da minha vesícula e, três dias depois, graças a um dolorido perrengue por
conta de abusar da própria cerveja e de porções desregradas de tambaqui sob o
sol agudo de Manaus. Mas isso é outro assunto, interno e lateral demais.
Voltemos ao Zemaria. E a Manaus.
Na manhã dessa tarde teve
Livro de Graça na Praça ao largo do Largo de São Sebastião, atrás do Teatro
Amazonas, de frente pro Palácio da Justiça. A primeira edição do evento em uma praça
fora de Belo Horizonte, fora das Minas Gerais, fora, enfim, do Sul Maravilha. E
que se dane o excesso de sul no Brasil. Manaus é uma maravilha, maninho. Literalmente.
Dezessete autores
convidados, todos quase manauaras, e três vencedores de concurso literário nacional,
quase todos manauaras, costuraram seus contos na obra Manaus 20 autores, título com destino certo no mercado editorial:
ser repartido gratuitamente, em 3.000 exemplares, pra população ali presente, toda
quase manauara, em espaço aberto e público. Livro de Graça na Praça. Zemaria
Pinto, mocorongo de nascença, foi show à parte e parte do show. Não haveria um
projeto grande e generoso como o Livro de Graça na cidade sem a ajuda desse
bamba das letras que, além de grande, é generoso. Cabeça gostosa de peixe da
lista dos contadores de contos do livro, Zemaria capitaneou o time local de
colaboradores, escritores e produtores do evento. Zemaria cresceu ele e cresceu
sua obra em Manaus. Foi em Manaus que publicou e continua a publicar seus copiosos
escritos em prosa e verso, seus poemas de sacanagem, seus livros pra criançada
e suas peças de teatro, quase todas encenadas só em Manaus. Manaus é cidade
grande no norte, é capital. Manaus é roça pro sul, é interior pros olhos cegos
ou olhos baixos do sul. Manaus e o norte são merda nenhuma pro sul, “pronto!”,
como costuma encerrar conversa um certo poeta Thiago de Mello.
Tesão, tesão. Não há
outro termo pra dizer do sentido de “romper a barreira montanhosa do Curral” (pra
citar a mim mesmo num artigo no jornal O
Tempo) e desaguar livros de graça e mergulhar em caras felizes de leitores
e autores numa cidade ao norte, numa cidade da importância de Manaus. Manaus
invisível aos olhos baixos do sul. Quem é Ajuricaba? Não sei. Quem são os
cabanos da Comarca do Alto Amazonas? Não sei, não sabemos. Comparo a ignorância
do sul pras coisas do norte com a ignorância do Brasil pras coisas da Latino-América.
Quem é Bolívar ou Martí? Sabemos não. E Hatuey? Não sabemos. Embora saibamos muito
bem quem seja Lincoln ou De Gaulle. Tem de olhar pra cima e ver a grande Manaus,
Manaus por quem se afogou o tuxaua Ajuricaba, Manaus onde, se quase todos são
manauaras, nenhum mais será manaó, que estes foram dizimados pelo bicho-branco,
praga de norte a sul, como já havia previsto a sabedoria dos desana do rio
Negro. Triste Manaus suntuosa da borracha, Manaus francesa, de um Eduardo
Ribeiro que manda trazer da França incongruente cúpula pro teatro de sua cidade.
Manaus francesa e amante das zonas, amante da zona francesa, francamente ama zônica.
“Manaus inculta”, diz um poeta quase manauara.
“Manaus corrupta”, diz o poeta de Barreirinha. “Afogada na bandalheira da Zona
Franca”, diz Thiago, um dos escritores de Manaus
20 autores. “E foi Manaus que me fez...”, “Manaus onde passeava com meu pai
e vi, na rua, os homens cumprimentarem uma senhora, dar-lhe passagem,
curvarem-se, tirarem o chapéu, e eu, menino, perguntei, quem é essa dama tão
importante, meu pai? Ele diz gravemente: é uma professora, aquela que ensina as
letras aos homens, para que se tornem advogados, médicos, engenheiros...”. Não
há mais essa Manaus. Mas custo a crer numa Manaus inculta. Inquieta, sim. Que
dizer de uma Academia de Letras que por meio século teve a marca do traseiro amazonense
do poeta dos “Estatutos do homem”, remanescente da briosa geração de 45, inimigo
das injustiças de Estado, exilado por mais de uma ditadura e que prefere verdades
servidas antes da sobremesa? Esse poeta não renunciou a essa mesma Academia “...constrangido
pelas práticas e intenções recentes, ambiciosas de poder, de alguns de seus
membros...”, como diz trecho da carta de renúncia? É muita vida literária pulsando
prum só mausoléu de imortais (lembrem-se de, e comparem com, a ABL de Sarney,
Paulo Coelho e Merval).
Eu, ali visitante de
primeira viagem, custo a crer numa Manaus inculta. Manaus de Vera do Val (outra
das contistas no livro do Livro de Graça), contadora do rio sensual, do rio
Negro, do rio macho. Para desfilar mais autores de Manaus 20 autores, Márcio de Souza, escritor, dramaturgo, cineasta
(dos poucos pra quem o sul ergue os olhos) e o escritor, crítico e,
principalmente, editor, Tenório Telles que, para o acadêmico-amazonense Ruy
Lins, “sacrificou a própria obra pra publicar a dos outros”. Esses “outros”,
quase todos manauaras. Manaus de uma editora inteira – a Valer – há 20 anos
dedicada a botar no prelo obras quase todas manauaras. Que Manaus inculta é essa
onde as bancas de revista não vendem revistas ou jornais, mas livros usados? Pra
não dizer que eu não falei da banca do Joaquim, que lança, na cidade, as obras
de Milton Hatoum (se bem que esse quase nada mais manauara, exilado que é no
sul). Sebos pela cidade quase toda, sebos nas feiras de artesanato, sebo na
Praça do Congresso, sebo na Praça da Polícia. Rodas de leitura no Largo, gente
fazendo fila pra pegar autógrafo e sorrindo com o livro na mão, esgotando em
poucas horas os 3.000 exemplares do Livro de Graça na Praça.
Custo a crer na Manaus
inculta, meu poeta. Mas eu sou moço e moço do sul, eu aprendo. Ano que vem, no
II Livro de Graça da Praça de Manaus, tiro essa história a limpo, Thiago.
Publicado em O Cometa Itabirano, Ed. 362, set/2013,
p. 22.
Vídeo do projeto Livro de Graça na Praça Manaus.