Zemaria Pinto
Marlene e Valquíria
Não consigo separar Marlene
de Valquíria. Jamais consegui separá-las nas minhas lembranças porque
certamente estavam sempre juntas quando convivemos, lá se vão quase oitenta
anos. Os nomes as traduzem. Valquíria: loura, nórdica, nariz afilado e
empinado, gestos suaves, o meu arquétipo de elegância feminina. Marlene:
morena, sardenta, falante, suada, o cabelo sempre em desalinho. Uma, docemente
triste. Outra, a alegria transbordada. Eram as musas da pequena escola. Quer
dizer, Valquíria era a musa, objeto de culto da molecada e de inveja das
colegas, com sua beleza nos limites do impossível. Marlene só a mim dizia
respeito: sentava-se ao meu lado, conversando o tempo todo e me beliscando
quando eu me distraía com a professora. Quando chegaram as férias de fim de
ano, Marlene disse-me que queria falar-me a sós. Isso significava nos
encontrarmos sob a escada que levava ao piso superior. Lá fora, a algazarra.
Marlene não disse nada, apenas abraçou-me suavemente e me beijou com
delicadeza, roçando os pequeninos lábios nos meus. Depois, sapecou-me um beijo
estalado numa das faces e saiu correndo e rindo. Foi a última vez que vi
Marlene.
A série de nanocontos Lábios que beijei é publicada na primeira e na terceira segunda-feira de cada mês.