Amigos do Fingidor

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Lábios que beijei 3



Zemaria Pinto
Marlene e Valquíria


Não consigo separar Marlene de Valquíria. Jamais consegui separá-las nas minhas lembranças porque certamente estavam sempre juntas quando convivemos, lá se vão quase oitenta anos. Os nomes as traduzem. Valquíria: loura, nórdica, nariz afilado e empinado, gestos suaves, o meu arquétipo de elegância feminina. Marlene: morena, sardenta, falante, suada, o cabelo sempre em desalinho. Uma, docemente triste. Outra, a alegria transbordada. Eram as musas da pequena escola. Quer dizer, Valquíria era a musa, objeto de culto da molecada e de inveja das colegas, com sua beleza nos limites do impossível. Marlene só a mim dizia respeito: sentava-se ao meu lado, conversando o tempo todo e me beliscando quando eu me distraía com a professora. Quando chegaram as férias de fim de ano, Marlene disse-me que queria falar-me a sós. Isso significava nos encontrarmos sob a escada que levava ao piso superior. Lá fora, a algazarra. Marlene não disse nada, apenas abraçou-me suavemente e me beijou com delicadeza, roçando os pequeninos lábios nos meus. Depois, sapecou-me um beijo estalado numa das faces e saiu correndo e rindo. Foi a última vez que vi Marlene.


A série de nanocontos Lábios que beijei é publicada na primeira e na terceira segunda-feira de cada mês.