Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 1/10


Zemaria Pinto
 
1. Premissas
 
Embora ociosa para alguns, a discussão a respeito da especificidade do texto de teatro atravessa milênios e oscila ao sabor das teorias em voga. Antes de falar, então, sobre os textos dramáticos de Márcio Souza, permito-me estabelecer alguns parâmetros essenciais para delimitar a abrangência desta análise:
1 – O texto dramático é literatura, sim. Sem renegar o bom Aristóteles e seus prosélitos, antes, complementando-os, afirmo que os gêneros literários, hoje, podem ser arquivados sob os títulos Poesia, Prosa de Ficção e Drama; a este último filia-se o texto teatral;
2 – O texto de teatro, entretanto, é literatura quando aprisionado nas páginas de um livro. Sobre o palco, ele adquire outra dimensão, passando a ser um componenteem alguns casos, o mais importante; em outros, nem tanto – do espetáculo;
3 – No geral, o texto dramático guarda total homologia com os outros gêneros, podendo ser apresentado em prosa ou em verso, e mantendo uma estrutura básica, formada por enredo, fábula, personagens, ambiente e tempo;
4 – O texto dramático alicerça-se na fala das personagens. Sem fala nãotexto dramático. Masteatro. De outra forma: um texto dramático formado de didascálias, sem falas, não é literatura. Mas pode ser teatro;
5 – Em síntese, texto de teatro é literatura, mas teatro é espetáculo. Com falas ou sem falas. 
Então, esclareça-se que as tentativas de análise aqui perpetradas levam em conta unicamente os textos impressos, esquecendo-se o autor, temporariamente, dos muitos espetáculos a que assistiu nos últimos trinta e muitos anos, em que esses textos foram encenados. Aliás, as peças de Márcio Souza, mesmo as que têm suporte musical, dão ênfase ao texto, na melhor tradição ocidental.
O leitor mais atento perceberá, na divisão das peças em blocos, a influência de Sábato Magaldi. Não se trata de emular simplesmente o grande crítico, mas de, tomando emprestada sua ideia, quando da organização do Teatro Completo de Nelson Rodrigues, identificar os caminhos comuns das onze peças publicadas de Márcio Souza. Assim, sem abdicar do sagrado direito ao arbítrio, mas apontando a ênfase onde ela se mostra mais densa, e sem preocupações cronológicas quanto à escritura ou encenação, mas buscando um nexo temporal no cerne dos textos, dividi a obra dramática de Márcio Souza em quatro blocos: peças míticas, tragédias amazônicas, chanchadas amazônicas e peças cariocas.
As peças míticas reúnem os textos que tratam da mitologia índia do rio Negro, em cuja foz foi plantada a cidade de Manaus. Dessana, Dessana representa o mito da criação do mundo, como o povo Dessana conseguiu preservá-lo. Jurupari, a guerra dos sexos baseia-se na visão Tariana do mito desse herói-civilizador, uma personagem de importância messiânica para os povos do rio Negro. A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê é uma comédia que trata de lendas do povo Tucano, envolvendo bichos e gente comum. Longe da condição de mito, mas não da mitologia.  
A Paixão de Ajuricaba, a primeira peça de Márcio Souza levada à cena, abre o capítulo das tragédias amazônicas, com a história ficcional do herói. A rigor, aliás, é a única tragédia do grupo. Pequeno teatro da felicidade, ambientada durante a guerra entre cabanos e legais, trata da tragédia coletiva, da mesma forma que Contatos amazônicos de terceiro grau, uma alegoria do poder destruidor da colonização.
Homenageando as origens cinéfilas do autor, agrupei entre as chanchadas amazônicas a cota da sua obra que seria, talvez, mais apropriado chamar de farsas históricas. Mas soaria muito helênico. As Folias do Látex é uma alegre análise sobre nossas origens e nosso caráter. A resistível ascensão do boto Tucuxi, baseada em fatos cruelmente reais, mostra a arte menor da política amazonense nos anos pós-Vargas/Maia. Tem piranha no pirarucu é um painel risonho e franco da Manaus pós-moderna.  
Finalmente, o bloco das peças cariocas traz os dois textos de Márcio Souza ambientados fora do Amazonas e com uma temática menos endógena: O elogio da preguiça, comédia, e Ação entre amigos, drama. O pano de fundo é o Brasil brasileiro dos anos 60, 70 – do século passado!
Tanto quanto possível, procurarei fugir das relações muito comuns que se faz entre o texto e a época em que foram escritos. Dizer, por exemplo, que Ajuricaba é uma alegoria da luta de parte do povo brasileiro contra a repressão da ditadura militar seria minimizar a importância estética do texto e admiti-lo datado. Por outro lado, histórias relacionadas à censura às peças, o próprio Márcio Souza contou-as em O palco verde; seria supérfluo repeti-las.
Deuses, heróis, bufões – e também gente comum: é nesse universo que o teatro de Márcio Souza se consubstancia. Utilizando-se de uma linguagem de grande carga poética, especialmente nas peças míticas e na tragédia de Ajuricaba, com expressões e palavras muitas vezes desconhecidas mesmo dos nativos urbanos, o texto impõe-se naturalmente, pela sua própria coerência interna. Entretanto, ao contrário do que o leitor apressado pode estar presumindo, não se trata de umteatro regionalista”.
 
Partes deste texto foram apresentadas como comunicações no II e no III Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário, em 2010 e 2012, respectivamente: O teatro mítico de Márcio Souza e Tragédia e chanchada no teatro de Márcio Souza.
 
Os 10 posts que apresentamos agora, sempre nas noites de quinta-feira, são a íntegra do ensaio Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica, publicado no livro O mostrador da derrota (Manaus, UEA Edições: 2013), organizado pelos professores escritores Allison Leão e Marcos Frederico Krüger.