Zemaria Pinto
1. Premissas
Embora ociosa para alguns, a discussão a respeito
da especificidade do texto de teatro atravessa milênios
e oscila ao sabor das teorias em voga . Antes de falar , então , sobre os textos dramáticos de Márcio Souza, permito-me
estabelecer alguns
parâmetros essenciais para
delimitar a abrangência desta análise :
1 – O texto
dramático é literatura ,
sim . Sem
renegar o bom
Aristóteles e seus prosélitos ,
antes , complementando-os, afirmo que os gêneros literários , hoje ,
podem ser arquivados sob
os títulos Poesia , Prosa de Ficção
e Drama ;
a este último filia-se o texto teatral;
2 – O texto de teatro, entretanto , só
é literatura quando
aprisionado nas páginas
de um livro .
Sobre o palco ,
ele adquire outra dimensão ,
passando a ser um
componente – em
alguns casos ,
o mais importante ;
em outros ,
nem tanto
– do espetáculo ;
3 – No geral ,
o texto dramático
guarda total
homologia com
os outros gêneros ,
podendo ser apresentado em
prosa ou
em verso ,
e mantendo uma estrutura básica , formada por
enredo , fábula ,
personagens , ambiente
e tempo ;
4 – O texto
dramático alicerça-se na fala das personagens .
Sem fala
não há texto
dramático . Mas
há teatro . De outra
forma : um texto dramático
formado só de didascálias, sem falas , não é literatura . Mas pode ser teatro;
5 – Em
síntese , texto
de teatro é literatura ,
mas teatro
é espetáculo . Com
falas ou
sem falas .
Então,
esclareça-se que as tentativas
de análise aqui
perpetradas levam em conta
unicamente os textos impressos , esquecendo-se o autor ,
temporariamente, dos muitos espetáculos a que
assistiu nos últimos
trinta e muitos anos, em que esses textos foram encenados. Aliás ,
as peças de Márcio Souza, mesmo as que
têm suporte musical, dão ênfase ao texto ,
na melhor tradição
ocidental .
O leitor mais
atento perceberá, na divisão das peças em blocos , a influência de
Sábato Magaldi. Não se trata de emular simplesmente o grande
crítico , mas
de, tomando emprestada sua ideia, quando da organização
do Teatro Completo
de Nelson Rodrigues, identificar os caminhos comuns
das onze peças publicadas de Márcio
Souza. Assim , sem
abdicar do sagrado
direito ao arbítrio ,
mas apontando a ênfase
onde ela
se mostra mais
densa , e sem
preocupações cronológicas quanto à escritura
ou encenação ,
mas buscando um
nexo temporal
no cerne dos textos ,
dividi a obra dramática
de Márcio Souza em quatro
blocos : peças
míticas, tragédias amazônicas, chanchadas amazônicas e peças
cariocas .
As peças míticas reúnem os textos
que tratam da mitologia
índia do rio Negro , em cuja foz foi plantada a cidade de Manaus. Dessana,
Dessana representa o mito da criação do mundo ,
como o povo
Dessana conseguiu preservá-lo. Jurupari , a guerra dos sexos
baseia-se na visão Tariana
do mito desse herói-civilizador, uma personagem de importância
messiânica para os povos
do rio Negro . A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê é uma comédia
que trata
de lendas do povo
Tucano , envolvendo bichos
e gente comum .
Longe da condição
de mito , mas
não da mitologia .
A Paixão de
Ajuricaba, a primeira peça
de Márcio Souza levada à cena , abre o capítulo
das tragédias amazônicas, com a história
ficcional do herói . A rigor ,
aliás , é a única
tragédia do grupo .
Pequeno teatro
da felicidade , ambientada durante a guerra
entre cabanos e legais ,
trata da tragédia
coletiva , da mesma
forma que Contatos amazônicos
de terceiro grau ,
uma alegoria do poder destruidor
da colonização.
Homenageando
as origens cinéfilas do autor , agrupei entre
as chanchadas amazônicas a cota da sua obra que seria,
talvez , mais
apropriado chamar
de farsas históricas. Mas soaria muito
helênico . As Folias do Látex
é uma alegre análise
sobre nossas origens
e nosso caráter .
A resistível ascensão
do boto Tucuxi, baseada
em fatos
cruelmente reais ,
mostra a arte
menor da política amazonense nos anos pós-Vargas/Maia .
Tem piranha
no pirarucu é um
painel risonho
e franco da Manaus pós-moderna.
Finalmente, o
bloco das peças
cariocas traz os dois
textos de Márcio Souza ambientados fora do Amazonas e com
uma temática menos
endógena : O elogio da preguiça ,
comédia , e Ação entre amigos ,
drama . O pano
de fundo é o Brasil brasileiro
dos anos 60, 70 – do século passado !
Tanto quanto possível ,
procurarei fugir das relações
muito comuns
que se faz entre
o texto e a época
em que
foram escritos . Dizer ,
por exemplo ,
que Ajuricaba
é uma alegoria da luta
de parte do povo
brasileiro contra
a repressão da ditadura
militar seria minimizar
a importância estética do texto e
admiti-lo datado . Por
outro lado ,
histórias relacionadas à censura às peças ,
o próprio Márcio Souza contou-as em O palco verde ;
seria supérfluo repeti-las.
Deuses, heróis , bufões
– e também gente
comum : é nesse universo
que o teatro
de Márcio Souza se consubstancia. Utilizando-se de uma linguagem
de grande carga
poética , especialmente
nas peças míticas e na tragédia de Ajuricaba, com
expressões e palavras
muitas vezes desconhecidas mesmo dos nativos
urbanos , o texto
impõe-se naturalmente , pela sua própria coerência
interna . Entretanto ,
ao contrário do que
o leitor apressado
pode estar presumindo, não
se trata de um
“teatro regionalista”.
Partes deste texto foram apresentadas como comunicações no II e no III Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário, em 2010 e 2012, respectivamente: O teatro mítico de Márcio Souza e Tragédia e chanchada no teatro de Márcio Souza.
Os 10 posts que apresentamos agora, sempre nas noites de quinta-feira, são a íntegra do ensaio Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica, publicado no livro O mostrador da derrota (Manaus, UEA Edições: 2013), organizado pelos professores escritores Allison Leão e Marcos Frederico Krüger.