João
Bosco Botelho
"Por
nove dias, as setas do deus dizimaram o exército... Filho de Atreu, quero crer
que nos cumpre voltar para casa sem termos nada alcançado, no caso de à morte
escaparmos, pois os Aquivos, além das batalhas, consome‑os a peste. Sus! Consultemos,
sem mora, qualquer sacerdote ou profeta, ou quem de sonhos entenda – que os
sonhos de Zeus se originam – para dizer‑nos a causa de estar Febo Apolo
indignado: se por não termos cumprido algum voto ou, talvez, hecatombes, ou se
lhe apraz, porventura, de nós receber o perfume de pingues cabras e ovelhas, a
fim de livrar‑nos da peste.” (Homero,Ilíada, I, 53).
Esse
segmento do texto de Homero retrata com clareza o conflito: a medicina
incompetente para curar os pestilentos, restou à população suplicar a ajuda de
Zeus. Na análise histórica das metáforas da coisa sagrada, tanto nas práticas
sociais das políticas dominantes quanto nas periféricas, é indispensável repensar
o conflito de competência entre a medicina e a religião.
As práticas de curas remetem às incontáveis imagens
das metamorfoses da coisa sagrada como parte das expressões e crenças religiosas
populares desvinculadas das rígidas estruturas hierárquicas das igrejas. Sob
essa perspectiva, é possível entender como e por que os curadores, adivinhos, magnetizadores,
feiticeiros e benzedores nunca cessaram de receber os consulentes.
Por esta razão, o repensar do binômio “curas-coisa
sagrada” suscita contínuo interesse das academias que evitam os compromissos
monolíticos com a lógica das concepções científicas, porque a cura mágica ou milagrosa,
que interliga o suplicante à coisa sagrada, parece tratar-se de credulidade. O
processo reprodutor desse fenômeno social passa, necessariamente, pela crença pessoal
ou coletiva no poder de curar exercido pelas coisas sagradas. Deste modo, a
coisa sagrada é, antes de tudo, aquilo que cura.
A disputa
trançada entre essa medicina popular, amparada na coisa sagrada como instrumento
de cura, e a medicina construída nas universidades, raramente vem à tona
despida de paixões, ora em defesa, ora atacando violentamente uma ou outra. Como
consequência desse embate, a importância social da medicina popular é diluída
na polarização de uma luta de poder em torno da cura, que pode ser simbolizada
na mesma essência de Apolo e Dionísio, onde a medicina‑universitária se
confronta com a medicina-religião.
As mensagens rupestres, nas paredes das
cavernas, quando associadas aos dados da paleopatologia, sugerem que a coisa
sagrada e a crença no renascimento estariam presentes antes de a espécie Homo ser dominante.
Fora
outras discussões teóricas ligando a coisa sagrada à religião, é interessante a
análise de Croce, que negou a independência da “categoria religião",
considerando-a somente subproduto da "categoria moral". Por outro
lado, Otto se esforçou para demonstrar a realidade da experiência pessoal com o
sagrado como fundamental para qualquer religião e Gramsci desconsiderou
qualquer conceito de religião sem a correspondente relação cultural entre o
indivíduo e a coisa sagrada. Os estudos gramscianos colocaram a religião no
conjunto ideológico ligado à ética e por isso contribuindo, em certas
circunstâncias, para que o homem aceitasse as desigualdades sociais.
Desse modo, independente das interpretações
teóricas, a coisa sagrada continua compondo o corpo da medicina popular e
alimentando conflitos entre a medicina construída nas universidades e a
religião.