Zemaria Pinto
1. Peças
míticas
Dessana, Dessana ou O começo
antes do começo (1997a, p. 47-90)[1],
encenada pela primeira
vez em
1975, é uma recriação do mito dessana da criação
do mundo , tal
como esse
mito chegou à segunda
metade do século
XX, tendo como ponto
de partida a versão
de Feliciano Lana, primo de Luiz Lana,
coautor de Antes o mundo
não existia, publicado em 1980. Em entrevista à antropóloga
Berta Ribeiro , Luiz Lana afirma que a decisão
de escrever o livro
foi tomada após
notar que os rapazes de sua tribo , entre eles Feliciano, estavam divulgando as histórias sagradas de forma
equivocada (KUMU; KENHÍRI, 1980, p. 9-10). O próprio
Luiz Lana, assistindo aos ensaios da
peça de Márcio Souza, teve oportunidade
de sugerir mudanças no texto (SOUZA, 1984, p. 34),
possivelmente eliminando ou corrigindo o
que julgava não
estar de acordo
com a tradição
que ficou estabelecida a partir
da publicação de seu livro , que tem parceria de Firmiano Lana, seu
pai – aliás ,
o verdadeiro repositório
das histórias contadas –, e texto definitivo
de Berta Ribeiro.
A encenação começa
com o diálogo ,
em pleno
caos urbano
de Manaus, entre a personagem
Dessana e o coro . Dessana, em contraponto com o coro ,
funciona como narrador do mito , elo entre
o presente e o eterno .
Ele invoca o mito
do começo do mundo ,
fazendo aparecer , vivida
por quatro
atrizes , Yebá-Beló, a que “surgiu das coisas
invisíveis”, a “não criada”, a “avó do mundo”, “mais velha
que o nada”. Essa múltipla
representação feminina
do deus criador
é uma alusão ao domínio
matriarcal. Yebá-Beló faz surgir os quatro trovões ,
seus irmãos :
o Trovão da Casa
do Rio , o Trovão
da Casa da Noite ,
o Trovão da Casa
do Sul e o Trovão do Wapuí-Cachoeira.
Observe-se no nome do terceiro trovão a influência
branca . Na sequência, como os trovões
revelam-se incompetentes , a avó do mundo faz surgir
Sulãn-Panlãmin, o incriado, que tem por missão criar o mundo . Este recebe
a ajuda do Trovão
Avô do Céu ,
que lhe
fornece a matéria para
a criação do mundo .
Do grupo de homens
e mulheres inicialmente
criados , que
brincam como crianças ,
Sulãn-Panlãmin escolhe Boleka, o primeiro chefe dessana. Para que a criação
fosse completada, era preciso que Boleka
levasse homens e mulheres
a atravessar o lago de leite . Surge então
o homem branco ,
armado com um
fuzil , tentando usurpar
a liderança de Boleka e de
Sulãn-Panlãmin, mas estes
não permitem que
ele embarque
na barriga do Trovão-Cobra-Barco, que era o próprio Trovão Avô do Céu :
– Adeus ,
adeus
ficarás para
sempre
Serás tão
diferente de nós
e o pássaro
é do peixe .
O segundo ato
representa as festas , os rituais e os trabalhos
manuais desenvolvidos
pelo povo dessana.
Mostra ainda
o nascimento de Jurupari , filho da Filha
do Trovão , que ,
virgem , comeu o fruto de uma árvore proibida . Quando
a representação mítica termina, Dessana,
responsável por
aqueles momentos
mágicos , de volta
ao caos urbano, é expulso
de cena por
um policial .
O mito da criação
é um mito
cosmogônico, símbolo do fim do caos e
do advento de uma nova
ordem . Faz parte ,
juntamente com
os mitos de origem ,
do grupo de mitos
a que Mircea Eliade chama
de “histórias verdadeiras”, que explicam a origem
de algo , para
discernir das “histórias
falsas”, as lendas e os contos populares (1986, p. 15-19). Toda cultura
minimamente desenvolvida tem a sua cosmogonia. Como
os dessanas não tinham originalmente uma escrita ,
seus mitos
chegaram até nós
pela transmissão
oral , sofrendo influências
diversas no meio do caminho ,
especialmente após
o contato com
o homem branco .
O professor Marcos
Frederico Krüger, ao analisar o livro
dos Lana, observa:
(...) seus
valores culturais foram alvo da sanha
devastadora dos missionários , no inevitável conflito
entre as civilizações
aborígine e adventícia .
O catolicismo nada
assimilou dos mitos amazônicos ;
o inverso, porém , aconteceu frequentemente,
como se pode constatar
em diversas narrativas
coletadas. (2003, p. 49)
Concebido como uma cantata ,
o texto de Dessana, Dessana é lírico e
reverente, sem dispensar
um leve
toque de humor ,
mantendo-se distante da armadilha
do misticismo . Com
relação à linguagem ,
uma outra armadilha quando
tratamos da representação de uma cultura diversa
da nossa , Márcio Souza, como de resto em todas as suas
obras onde
os índios são
protagonistas , opta pela
“tradução ” para
uma linguagem muito
próxima à da plateia, que , embora rica em símbolos , jamais
resvala no caricatural.
[1] Com relação aos textos analisados, limitar-me-ei a
citar sua inserção no volume mencionado nas Referências, abstraindo que as
citações, diretas e indiretas, estão contidas naquele intervalo.