Zemaria Pinto
1. Tragédias
amazônicas
Faz-se necessário
esclarecer que
a tragédia de que
trato aqui
não se atrela à concepção
aristotélica , em
que o herói ,
de índole superior
e destituído de toda maldade , comete uma “falha ”,
previamente determinada pelos deuses (1988, p. 31-33); nem tampouco à linha
de Schopenhauer, para que m o sentido
da tragédia extrapola os pecados individuais ,
visando expiar o “pecado original , isto
é, a culpa da existência mesma” (2005, p. 334). Acredito, com Camus, que a tragédia moderna é coletiva (2008, p. 312-317); seus efeitos
visam refletir a perda
ou a destruição
que se abate
sobre determinado
grupo , cabendo ao drama
a representação do individual .
Seria cansativo esboçar
uma relação , mínima
que fosse, das tragédias
coletivas que marcaram o século XX ou mesmo este incipiente XXI – não
importa a abrangência geográfica do
levantamento –, que poderiam ser temas a levar ao palco. É somente
nesse sentido que
as três peças
aqui analisadas podem ser
classificadas como tragédias .
A Paixão de Ajuricaba, encenada inicialmente
em 1974, repercute no próprio
título o seu
caráter trágico :
a palavra paixão ,
como aqui
empregada , tem conotações
místicas , ligadas
ao sofrimento dos primitivos cristãos . Não era essa certamente
a intenção do autor ,
mas sim associar a luta
do guerreiro manau à ideia de mártir da colonização. Dividida em
dois atos , a peça tem na sua
primeira parte
a criação ficcional do idílio entre
Ajuricaba e Inhambu , enquanto
a segunda recria o fato
histórico da prisão
e da morte de Ajuricaba.
A cena
inicial mostra
o coro lamentando a morte
de Ajuricaba, anunciando ao público /leitor o desfecho
trágico do enredo .
Em seguida ,
Ajuricaba e Inhambu se digladiam com palavras e,
aos poucos , o ritual
da conquista amorosa
vai nos fornecendo informações
sobre os acontecimentos
antecedentes : Ajuricaba derrotara o líder xiriana Poeraré, aliado
dos portugueses, pai de Inhambu ,
e esta ainda se ressente da perda . Ajuricaba mostra
suas armas :
“– Eu sou Ajuricaba, filho de Poronominaré, senhor
do rio Negro ,
rei dos manau, conquistador
do Parima e flagelo dos portugueses.”
Atuando como narrador, o coro
fornece algumas informações básicas:
– Os manau, povo
de Ajuricaba, habitavam neste país
romântico que era
o vale do rio Negro . Invadido por
portugueses, ingleses, espanhóis, franceses e holandeses, esse
país romântico passou a ver
seus habitantes
espoliados e escravizados pelos europeus , preados desumanamente
pelos exploradores
de droga do sertão .
Ajuricaba, acusado de
aliar-se aos inimigos de Portugal, atrai
a ira dos súditos que
querem a Amazônia para a coroa .
O primeiro ato
termina numa bela elipse ,
com a fusão
entre a festa
de casamento de Ajuricaba e Inhambu
e a prisão de ambos .
Pela denúncia de alta traição contra o rei de
Portugal por se aliar
ao “invasor”, Ajuricaba será levado a
Belém, para ser julgado. Tal como no ato anterior , o
coro e as conversas
de Ajuricaba com o Capitão
Português , o carcereiro
Teodósio (um aculturado) e com o Irmão Carmelita fornecem informações
sobre o pano
de fundo histórico
da peça . Inhambu ,
liberta , intercede pelo
marido junto
ao Capitão Português ,
que lhe
faz a mais velha
das chantagens sexuais
em troca
da facilitação da fuga de Ajuricaba.
Perturbada, ela procura
o Irmão Carmelita .
Dos cínicos conselhos
deste, com direito
a citação de Santo
Agostinho, resulta o único momento de distensão
do segundo ato .
Inhambu procura ,
então , o Comandante
Português , com
a intenção de matá-lo, mas , na luta , este desvia a arma para o corpo da
ex-princesa xiriana, agora rainha manau, que
tomba morta . Na sequência, Ajuricaba é
torturado e colocado inconsciente numa canoa que navega rio abaixo , conduzida
pelos soldados .
Após nova sessão de tortura ,
os soldados jogam Ajuricaba ao rio e três entidades míticas o recebem em
seus braços .
Um soldado
anuncia que o rebelde
atirou-se n’água por
vontade própria .
O coro retoma o mesmo
motivo da prédica
inicial . A peça
termina com Teodósio, o carcereiro , despindo-se de suas
roupas de branco
e pintando-se para a guerra :
“– Meu nome
é Dieroá, antigo assimilado de nome Teodósio, guerreiro
e flagelo dos portugueses.”
O pouco
que se sabe sobre
Ajuricaba é suficiente para
entender seu papel mítico no imaginário
amazônico, tão rarefeito de heróis históricos .
Filho de Huiuiebéue, abandonou a casa paterna por discordar da aliança do pai com os invasores .
De 1723 a
1727 foi o líder dos rebeldes das mais
de trinta nações do vale
do rio Negro ,
que não
aceitavam a invasão branca .
Traduzindo em números ,
ecoando o Padre João Daniel, Márcio
Souza diz que “até
1750 foram descidos à força mais de três milhões de índios ”
(1994, p. 61). Para efeito
de comparação, a população do estado do
Amazonas, no censo de 2010, foi estimada pelo IBGE em três e meio milhões de
pessoas. E não eram apenas
os portugueses os algozes : ingleses,
franceses, espanhóis e holandeses também
andavam por cá .
Ajuricaba foi acusado formalmente pela coroa de
aliar-se aos holandeses. Mas não se tratava de traição ,
pois não
devia vassalagem a rei nenhum , posto que era rei e livre . A verdade mostrou-se bem depois : Ajuricaba jamais
se aliou aos holandeses. Tudo fora forjado para que o massacre tivesse foros de legalidade (REIS, 1989, p. 100-102). Aliás , formalmente ,
Ajuricaba atirou-se ao rio , preferindo a morte aos grilhões .
Essa versão , não
diminuiu o impacto de seu
martírio . Em
1729, um índio
chamado Teodósio recomeçou a luta pela libertação
do vale do rio Negro
(REIS, 1989, p. 99; SOUZA, 1994, p. 63).
A Paixão de Ajuricaba, estreia de Márcio Souza nos palcos , é sua obra mais trabalhada, do ponto
de vista da carpintaria
do texto . A linguagem
é densa e a influência
brechtiana não se disfarça, ao basear a trama nas relações entre
as personagens , revelando as contradições de uns e de outros
– o que é básico
para a ideia do teatro
épico (ROUBINE, 2003, p. 152-153). O que
para alguns
parecerá lentidão é, na verdade , a preparação do clímax , a partir de vários pontos gradativos
de tensionamento. A opção por um tom recitativo ,
aliás , faz parte
do distanciamento , bem
como os tratamentos
utilizados: os chefes guerreiros são reis e suas
filhas são princesas. Há toda uma homologia
com uma autêntica
tragédia clássica ,
buscando revelar o caminho
entre a história
e o mito . Quando
Ajuricaba declara-se filho de
Poronominaré estaria afiliando-se ao mítico herói
baré ou simplesmente
rejeitando seu verdadeiro
pai ? Poronominare ou
ainda Poromina Minare, a quem Nunes Pereira
chama de herói-de-cultura (1980, p.
356-357), é um herói civilizador, mas não da estirpe de Jurupari ,
que lhe
é bem anterior. Seus
feitos guardam estreita
homologia com
histórias de outros
heróis amazônicos ,
como Baíra e Macunaíma, mitos plenos de
humanidade . De qualquer
forma , o anacronismo é
uma liberdade poética
do autor , que ,
como observa Marcos
Frederico Krüger, confere ao tuxaua
manau “uma ascendência acima
da dos mortais comuns ,
como queria Aristóteles, para
quem no trágico
realiza-se a imitação de seres superiores ”
(2003, p. 256). Essa relação com o sagrado não dispensa que o próprio Ajuricaba
invoque dois conhecidos
nossos , para descrever a degradação
provocada pelo invasor :
– Vê Inhambu , são os nossos irmãos
trabalhando para o branco .
Vê como
eles são
fustigados e como eles
já não
podem mais caçar
nem pescar
curimatãs, nem pintar
o rosto para um dabacuri. Vê
como eles
já não
temem Cainhamé e se apavoram com Jurupari .
Falando de si mesmo em terceira pessoa , o confiante
Ajuricaba se associa ao mito :
– Com este sim ,
princesa xiriana,
E o que
Cainhamé ordenar será cumprido,
vertendo vida
nesta selva quase
devastada.
Embora não caiba neste espaço
de análise , registre-se que A Paixão de Ajuricaba cumpre uma outra premissa
brechtiana: a de inserir o público /leitor numa discussão que transcende a mera
divergência ideológica. Ao prospectar o passado
os problemas atuais
emergem – não apenas
os de 1974, mas também
os de 2013.