Amigos do Fingidor

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 5/10


Zemaria Pinto

1.  Tragédias amazônicas
 

Faz-se necessário esclarecer que a tragédia de que trato aqui não se atrela à concepção aristotélica, em que o herói, de índole superior e destituído de toda maldade, comete uma “falha”, previamente determinada pelos deuses (1988, p. 31-33); nem tampouco à linha de Schopenhauer, para quem o sentido da tragédia extrapola os pecados individuais, visando expiar o “pecado original, isto é, a culpa da existência mesma” (2005, p. 334). Acredito, com Camus, que a tragédia moderna é coletiva (2008, p. 312-317); seus efeitos visam refletir a perda ou a destruição que se abate sobre determinado grupo, cabendo ao drama a representação do individual. Seria cansativo esboçar uma relação, mínima que fosse, das tragédias coletivas que marcaram o século XX ou mesmo este incipiente XXI – não importa a abrangência geográfica do levantamento –, que poderiam ser temas a levar ao palco. É somente nesse sentido que as três peças aqui analisadas podem ser classificadas como tragédias.

A Paixão de Ajuricaba, encenada inicialmente em 1974, repercute no próprio título o seu caráter trágico: a palavra paixão, como aqui empregada, tem conotações místicas, ligadas ao sofrimento dos primitivos cristãos. Não era essa certamente a intenção do autor, mas sim associar a luta do guerreiro manau à ideia de mártir da colonização. Dividida em dois atos, a peça tem na sua primeira parte a criação ficcional do idílio entre Ajuricaba e Inhambu, enquanto a segunda recria o fato histórico da prisão e da morte de Ajuricaba.    

Segundo o texto que tenho em mãos (1997a, p. 17-46), a ação se passa em 1738. Deve ser um equívoco, pois o próprio Márcio Souza, na Breve História da Amazônia, registra a morte de Ajuricaba em 1728 (1994, p. 62-63). O professor Arthur Reis a situa em 1727 (1989, p. 98-99).

A cena inicial mostra o coro lamentando a morte de Ajuricaba, anunciando ao público/leitor o desfecho trágico do enredo. Em seguida, Ajuricaba e Inhambu se digladiam com palavras e, aos poucos, o ritual da conquista amorosa vai nos fornecendo informações sobre os acontecimentos antecedentes: Ajuricaba derrotara o líder xiriana Poeraré, aliado dos portugueses, pai de Inhambu, e esta ainda se ressente da perda. Ajuricaba mostra suas armas: “– Eu sou Ajuricaba, filho de Poronominaré, senhor do rio Negro, rei dos manau, conquistador do Parima e flagelo dos portugueses.”

Atuando como narrador, o coro fornece algumas informações básicas: 

– Os manau, povo de Ajuricaba, habitavam neste país romântico que era o vale do rio Negro. Invadido por portugueses, ingleses, espanhóis, franceses e holandeses, esse país romântico passou a ver seus habitantes espoliados e escravizados pelos europeus, preados desumanamente pelos exploradores de droga do sertão.
 

Ajuricaba, acusado de aliar-se aos inimigos de Portugal, atrai a ira dos súditos que querem a Amazônia para a coroa. O primeiro ato termina numa bela elipse, com a fusão entre a festa de casamento de Ajuricaba e Inhambu e a prisão de ambos.

Pela denúncia de alta traição contra o rei de Portugal por se aliar ao “invasor”, Ajuricaba será levado a Belém, para ser julgado. Tal como no ato anterior, o coro e as conversas de Ajuricaba com o Capitão Português, o carcereiro Teodósio (um aculturado) e com o Irmão Carmelita fornecem informações sobre o pano de fundo histórico da peça. Inhambu, liberta, intercede pelo marido junto ao Capitão Português, que lhe faz a mais velha das chantagens sexuais em troca da facilitação da fuga de Ajuricaba. Perturbada, ela procura o Irmão Carmelita. Dos cínicos conselhos deste, com direito a citação de Santo Agostinho, resulta o único momento de distensão do segundo ato. Inhambu procura, então, o Comandante Português, com a intenção de matá-lo, mas, na luta, este desvia a arma para o corpo da ex-princesa xiriana, agora rainha manau, que tomba morta. Na sequência, Ajuricaba é torturado e colocado inconsciente numa canoa que navega rio abaixo, conduzida pelos soldados. Após nova sessão de tortura, os soldados jogam Ajuricaba ao rio e três entidades míticas o recebem em seus braços. Um soldado anuncia que o rebelde atirou-se n’água por vontade própria. O coro retoma o mesmo motivo da prédica inicial. A peça termina com Teodósio, o carcereiro, despindo-se de suas roupas de branco e pintando-se para a guerra: “– Meu nome é Dieroá, antigo assimilado de nome Teodósio, guerreiro e flagelo dos portugueses.”

O pouco que se sabe sobre Ajuricaba é suficiente para entender seu papel mítico no imaginário amazônico, tão rarefeito de heróis históricos. Filho de Huiuiebéue, abandonou a casa paterna por discordar da aliança do pai com os invasores. De 1723 a 1727 foi o líder dos rebeldes das mais de trinta nações do vale do rio Negro, que não aceitavam a invasão branca. Traduzindo em números, ecoando o Padre João Daniel, Márcio Souza diz queaté 1750 foram descidos à força mais de três milhões de índios” (1994, p. 61). Para efeito de comparação, a população do estado do Amazonas, no censo de 2010, foi estimada pelo IBGE em três e meio milhões de pessoas. E não eram apenas os portugueses os algozes: ingleses, franceses, espanhóis e holandeses também andavam por . Ajuricaba foi acusado formalmente pela coroa de aliar-se aos holandeses. Mas não se tratava de traição, pois não devia vassalagem a rei nenhum, posto que era rei e livre. A verdade mostrou-se bem depois: Ajuricaba jamais se aliou aos holandeses. Tudo fora forjado para que o massacre tivesse foros de legalidade (REIS, 1989, p. 100-102). Aliás, formalmente, Ajuricaba atirou-se ao rio, preferindo a morte aos grilhões. Essa versão, não diminuiu o impacto de seu martírio. Em 1729, um índio chamado Teodósio recomeçou a luta pela libertação do vale do rio Negro (REIS, 1989, p. 99; SOUZA, 1994, p. 63).    

A Paixão de Ajuricaba, estreia de Márcio Souza nos palcos, é sua obra mais trabalhada, do ponto de vista da carpintaria do texto. A linguagem é densa e a influência brechtiana não se disfarça, ao basear a trama nas relações entre as personagens, revelando as contradições de uns e de outros – o que é básico para a ideia do teatro épico (ROUBINE, 2003, p. 152-153). O que para alguns parecerá lentidão é, na verdade, a preparação do clímax, a partir de vários pontos gradativos de tensionamento. A opção por um tom recitativo, aliás, faz parte do distanciamento, bem como os tratamentos utilizados: os chefes guerreiros são reis e suas filhas são princesas. Há toda uma homologia com uma autêntica tragédia clássica, buscando revelar o caminho entre a história e o mito. Quando Ajuricaba declara-se filho de Poronominaré estaria afiliando-se ao mítico herói baré ou simplesmente rejeitando seu verdadeiro pai? Poronominare ou ainda Poromina Minare, a quem Nunes Pereira chama de herói-de-cultura (1980, p. 356-357), é um herói civilizador, mas não da estirpe de Jurupari, que lhe é bem anterior. Seus feitos guardam estreita homologia com histórias de outros heróis amazônicos, como Baíra e Macunaíma, mitos plenos de humanidade. De qualquer forma, o anacronismo é uma liberdade poética do autor, que, como observa Marcos Frederico Krüger, confere ao tuxaua manau “uma ascendência acima da dos mortais comuns, como queria Aristóteles, para quem no trágico realiza-se a imitação de seres superiores” (2003, p. 256). Essa relação com o sagrado não dispensa que o próprio Ajuricaba invoque dois conhecidos nossos, para descrever a degradação provocada pelo invasor: 

Inhambu, são os nossos irmãos trabalhando para o branco. como eles são fustigados e como eles não podem mais caçar nem pescar curimatãs, nem pintar o rosto para um dabacuri. como eles não temem Cainhamé e se apavoram com Jurupari.
 

Falando de si mesmo em terceira pessoa, o confiante Ajuricaba se associa ao mito: 

Com este sim, princesa xiriana,

Jurupari sabe que eles não terão descanso.

E o que Cainhamé ordenar será cumprido,

vertendo vida nesta selva quase devastada. 
 

Embora não caiba neste espaço de análise, registre-se que A Paixão de Ajuricaba cumpre uma outra premissa brechtiana: a de inserir o público/leitor numa discussão que transcende a mera divergência ideológica. Ao prospectar o passado os problemas atuais emergem – não apenas os de 1974, mas também os de 2013.