João
Bosco Botelho
Com
certa independência da escolaridade formal, porém profundamente marcado pela
construção cultural, homens e mulheres sempre souberam que as próprias condições
de vida interferiam no curso das enfermidades.
Para que se possa reutilizar o
conhecimento sociocultural historicamente acumulado na luta atávica contra a
doença e a morte é imperativo reestruturar o aprendizado do médico. Novos
saberes precisam ser consolidados para possibilitar ao aluno de Medicina situar
historicamente os pontos importantes da saúde pública. Assim, será mais fácil
fornecer durante o aprendizado acadêmico os subsídios teóricos das soluções
para os problemas que corroem a saúde de milhões de brasileiros e fazem morrer
por ano outras tantas crianças com menos de um ano de idade.
Somente com o resguardo da história
social evitaremos a posição política dogmático‑maniqueísta, montada na fantasia
da incompetência politiqueira, rastreadora do apoio corporativista inconsequente.
A doença nas diversidades de apresentação, sempre
acompanhou o homem ao longo do processo de transformação. Sob este ponto de
vista, é possível entendê‑la como forma de expressão da vida, onde cada cultura
cristaliza ao longo do tempo, as próprias condições de luta para vencer as enfermidades.
Nas
sociedades industriais, a necessidade rápida de mão de obra impôs a atual
complexidade aos sistemas de saúde com efetiva participação dos médicos e do
Estado. O povo passou a ser coagido, de modo crescente, para cumprir normas
oficiais de higiene. Este conjunto de ações representa, do mesmo modo que nos
templos bíblicos, a resposta das sociedades atuais ao inevitável aparecimento
de novas formas de doenças. Foucault caracterizou esta fase como a tomada de
uma consciência política, onde o médico participa da vigilância sanitária junto
com outros mecanismos coercitivos do Estado.
Desse modo, como as instituições públicas e
privadas respondem pela aplicação da política de saúde, ao mesmo tempo, são as
responsáveis pelo aparecimento de novas modalidades de doenças nas pessoas e
nos outros animais. Essa trágica combinação se dá no momento em que permitem a
terrível agressão ao meio ambiente causada pela busca irresponsável de novas
fontes de matéria prima, alterando de modo irreversível o ecossistema. Já é
possível avaliar o que representará à humanidade as destruições que estão em
pleno curso.
Se
for acrescentado o uso indiscriminado dos antibióticos, dos aparelhos
hospitalares, das cirurgias desnecessárias e as infecções hospitalares, índices
de morbidade e mortalidade causadas pelos serviços de saúde, é possível que
alguns aspectos da atual prática médica causem mais danos que vantagens ao
homem.
Alguns
pesquisadores sociais partem da tese de que existe uma tendência universal para
curar e compreender a doença. É aqui que se interligam forte e
indissoluvelmente os sistemas cognitivos − o mítico e o empirico −
para compor o sistema de respostas processadas por meio do conhecimento historicamente
acumulado.
Os mecanismos que interferem na
assimilação social da doença são muitos e complexos. Como a nossa herança
cultural está solidamente fincada na memória, é impossível ao médico não
conviver diariamente na prática com os mitos que se acoplam na compreensão
popular da doença. Deixar de aceitar esta realidade é tão danoso quanto ignorar
a pesquisa do laboratório.
Para
que o médico possa se situar nesse conjunto das relações sociais e tome
consciência do próprio papel, é necessário que os dois sistemas cognitivos −
mítico e empírico − sejam analisados, mesmo porque eles convivem em unidade
indissolúvel.
Muitas universidades iniciaram, há
mais de cinquenta anos, os estudos das ciências sociais ligadas à medicina. Entre
as mais conhecidas estão a Yale e Stanford, nos Estados Unidos; Oxford e Cambridge,
na Inglaterra; Sorbonne, na França; e a Autônoma, de Barcelona. Dezenas de
publicações sobre o tema circulam anualmente, financiadas por esses grupos de
trabalho.
Entre as primeiras universidades
brasileiras a perceberem essa nova necessidade no aprendizado médico, em
Manaus, alguns ex-alunos e eu tivemos a honra de ter iniciado esse processo,
com a Disciplina Historia da Medicina e Grupo de Pesquisas, em 1982, na
Universidade Federal do Amazonas; em 2001, na Universidade do Estado do
Amazonas, e em 2002, na Universidade Nilton Lins.