Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Escolha do médico: elo de confiança


 
João Bosco Botelho

 

         A doença não existe só em si mesma; é uma entidade abstrata, nominada e classificada pelas pessoas, como história de longa duração.

         A conjunção simultânea dos sinais e sintomas que a doença determina no corpo humano – a síndrome – impõe a observação pelo médico ou outro curador da doença como mal. Essa situação assume na prática o ponto de partida para retirar as doenças das construções teóricas abstratas.

         Aquilo que a enfermidade causa, na essência entendido como mal que deve ser extirpado, constitui o principal pilar que alicerça a abordagem do doente, montando o elo de confiança entre o enfermo e o curador, não somente como fenômeno biológico, mas também como parte da totalidade sociocultural de ambos, curador e  doente.

         Não é somente a doença que depende desse conjunto de influências, a própria organização dos serviços de saúde é envolvida, fazendo com que ambas, saúde e doença, sejam parâmetros para analisar as características da cultura dominante de determinada comunidade.

         Ao longo da História, o controle das endemias sempre esteve diretamente ligado a essa realidade. O historiador Jaques Le Goff é enfático: "La maladie n'appartient pas seulement à l'histoire superficielle des progrès scientifiques et technologiques mais à l'histoire profonde des savoirs et des pratiques lies aux structures sociales, aux institutions, aux representations, aux mentalites".

         Um dos exemplos mais marcantes é a hanseníase. Essa doença começou a desaparecer da Europa ainda no século 17, trezentos antes do início do tratamento considerado efetivo. Aqui reside um dos pontos cruciais do atual entendimento da medicina enquanto pratica social: é preciso que as nossas escolas de medicina repensem as metodologias para que os alunos compreendam a dimensão social da doença.

         A análise cultural das doenças pode contribuir também para esclarecer como se processa a escolha que o doente faz na procura do médico ou do curandeiro, consolidando o elo de confiança.  Em determinadas culturas distantes milhares de quilômetros entre si, esse encaminhamento é concretizado de modo semelhante, isto é, as pessoas se baseiam no sistema referencial dos amigos e não em indicadores objetivos do êxito profissional.

         Após a escolha do curador, não necessariamente médico, as práticas se distanciam rapidamente. Em certo sentido, em especial na construção do elo de confiança, a medicina popular é mais integral que a medicina das universidades. O médico tende, como resultado da sua formação desvinculada do sociocultural, a abordar exclusivamente a doença em compartimentos corpóreos, enquanto que o curador‑popular se envolve com o dominante cultural e o utiliza no seu objetivo de curar.

          A milenar crença de que a doença é um castigo divino ainda é marcante em muitas culturas. Nas grandes religiões judaica, cristã e muçulmana, em certas circunstâncias, continua sendo utilizada em larga escala como instrumento de controle social.

         A compreensão das enfermidades como forma de desvio social foi teorizada por Parsons, em 1951. Essa abordagem foi marcada pelo etnocentrismo americano da década de cinquenta, que acabou legitimando os Relatórios Flexner quando afirmou: "O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente, um médico) e cooperar no processo de recuperação".

          A compreensão de Parsons estabeleceu o pressuposto de que as pessoas não podem se ajudar mutuamente e transformou todos em seres passivos e obedientes que devem se submeter inteiramente ao poder médico e da Medicina.

         Essa conduta fortaleceu a medicina e a morte hospitalar e fixou relação de absoluta dependência entre o doente e o médico. É evidente que o estudo de Parson só poderia ser aplicado nos países industrializados, com grandes recursos disponíveis para empregar na saúde. É inaceitável nos países subdesenvolvidos, onde a maioria esmagadora da população não tem acesso à medicina hospitalar.         Nessa situação, na qual o doente sofre forte influência da mídia, descrevendo, diariamente, os "sucessos da tecnologia curando doenças temidas", se transforma em duro confronto com a realidade vivida, sem cuidados primários com a saúde, tornando impossível a construção dos elos de confiança entre doente e médico.