Amigos do Fingidor

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 3/10


Zemaria Pinto

 
Do mito cosmogônico passamos ao mito de origem, do herói-civilizador. Jurupari, a guerra dos sexos (1997a, p. 91-152), encenada pela primeira vez em 1979, é a versão Tariana do mito, em três atos. Para Camara Cascudo, Jurupari “é, geograficamente, o mito mais prestigioso, com vestígios vivos em quase todas as tribos” (1988, p. 420). A força do mito é a provável responsável pelo ardil missionário de classificá-lo como um demônio, na concepção cristã. Ironicamente, uma autoridade católica, D. Frederico Costa, em documento de 1909, defende o herói da desonra que seus pares tentaram lançar-lhe, enumerando os oito mandamentos de Jurupari e concluindo que tanta reserva moral não caberia num espírito maligno (apud CASCUDO, 1983, p.76-77). Ainda para Câmara Cascudo, Jurupari “é o legislador divinizado, que se encontra como base em todas as religiões e mitos primitivos” (1988, p. 420).
A ação de Jurupari se passa num tempo mítico, anterior ao que possa ser admitido como História, mas sem que esta possa negá-lo de todo. Uma peste dizima os homens da tribo, deixando apenas alguns velhos, entre eles um pajé, que, para Naruna, a matriarca, era apenas “uma raiz, uma planta antiga”. Desoladas, as mulheres vão banhar-se no lago Muypá, que lhes era proibido, por ser o lago sagrado onde Ceucy, a estrela, banhava-se todos os dias, “lavando o suor de seus amantes”. Para surpresa das mulheres, o velho pajé lhes aparece no corpo de um jovem belo e forte, anunciando um castigo por haverem ignorado a interdição: “pelo crime cometido, a geração que nascerá amanhã excluirá a mulher para sempre de tudo o que for sério e grave”. Ele mergulha no lago e desaparece entre as mulheres. Depois de passadas dez luas, “todas as mulheres pariram ao mesmo tempo”. Naruna deu à luz uma menina, a quem chamou Ceucy da Terra.
Adolescente, Ceucy, ainda virgem, come uma fruta proibida e o sumo dessa fruta escorre-lhe pelo ventre, fecundando-a. Dez luas passadas, nasce Jurupari. O recém-nascido desaparece como por encanto e seu choro é ouvido próximo à árvore do fruto proibido. Ceucy deixa-se ficar junto à árvore e, durante algum tempo, sempre que adormece, sente o filho sugar-lhe o seio. Vinte anos decorrem até que ele reapareça para assumir o lugar que lhe fora reservado. Aos poucos, sua liderança vai sendo imposta aos homens, a quem fala sobre a música, a agricultura do milho, da mandioca e da banana, e sobre o novo tempo em que eles assumirão o destino da tribo. Essas informações devem pertencer somente aos homens: são os segredos de Jurupari. Numa das reuniões proibidas às mulheres, Ceucy, que ouvia escondida, é descoberta e recebe o castigo de morte do próprio filho. Naruna foge com as outras mulheres para o “lago de águas verdes”, recebendo os homens uma vez por ano      
Mas Naruna não desiste de conhecer os segredos de Jurupari, que os iniciados dominam. Este, por sua vez, aplaca a tensão dos homens prometendo que dentro em breve as mulheres voltarão. A jovem Diádue, a serviço de Naruna, consegue seduzir o maduro e experiente Uálri, que é condenado a morrer pela traição. O “segredo” revelado às mulheres é o conhecimento erótico de Uálri: “ele agiu com uma sabedoria nova e não resumiu o amor em poucos gestos”. As mulheres, então, retornam, deixando Naruna e algumas poucas que lhe permaneceram fiéis. Jurupari ensina aos homens acerca das flautas sagradas: 

Minhas flautas farão os desejos ondularem como ramagens saudando o tempo, na alta copa da mata, esvaindo todo o travo das frustrações na torrente distante espumando na descida. E os homens crescerão sem medo, como o trêmulo pássaro parado na margem antes do ocaso.
O terceiro ato começa mostrando outro legado de Jurupari: os adornos. Os homens vão ao encontro anual com as últimas defensoras do matriarcado. Jurupari, pela primeira vez, vai junto. No encontro com Naruna dá-se o inevitável: ele a mata. Quando retornam, ainda sob os reflexos do incêndio que consome a maloca de Naruna, Jurupari e Diádue fazem amor, mas ele a adverte: 

– Esta será a nossa primeira e última noite. Quando os séculos se consumarem eu voltarei a te encontrar e viveremos juntos. Eu mergulharei em ti e repousarei das minhas fadigas e sustos. 

Pela manhã, Diádue transforma-se num lago. Antes, entretanto, Jurupari revelara-lhe um último segredo: o Trovão Avô do Mundo queria casar-se e incumbira-o de encontrar a mulher perfeita. Ele precisava continuar sua busca por uma mulher paciente, que soubesse guardar segredo e não fosse curiosa...
Sem um Luiz Lana por perto, Márcio Souza trabalhou à vontade as inúmeras variantes do mito de Jurupari e deu-lhe uma formatação literária condizente, amarrando-o com sua concepção anterior da criação do mundo e com outras histórias, como a das Amazonas, que seriam as guerreiras lideradas por Naruna. O mito de Jurupari é uma “história verdadeira” e explica a origem de vários costumes e práticas: a música, a agricultura, os adornos, o patriarcado. Mas sua fama de legislador deve-se aos mandamentos coligidos por D. Frederico Costa:  

1º A mulher deverá conservar-se virgem até a puberdade;
Nunca deverá prostituir-se e há de ser sempre fiel ao seu marido;
Após o parto da mulher, deverá o marido abster-se de todo trabalho e de toda comida, pelo espaço de uma lua, a fim de que a força dessa lua passe para a criança;
4º O chefe fraco será substituído pelo mais valente da tribo;
5º O tuxaua poderá ter tantas mulheres quantas puder sustentar;
6º A mulher estéril do tuxaua será abandonada e desprezada;
7º O homem deverá sustentar-se com o trabalho de suas mãos;
Nunca a mulher poderá ver Jurupari a fim de castigá-la de algum dos três defeitos nela dominantes: incontinência, curiosidade e facilidade em revelar segredos. (apud CASCUDO, 1983, p.76-77) 

Sobre o oitavo mandamento, que é também o epílogo da peça, Stradelli o apresenta como o desfecho da aventura humana de Jurupari, numa missão que lhe fora atribuída pelo Sol: o de procurar a mulher perfeita, que não tivesse nenhum daqueles defeitos (apud CASCUDO, 1967, p. 58).
A despeito do título, que pode levar o leitor incauto a pensar na Lisístrata, de Aristófanes, Jurupari, a guerra dos sexos é um texto dramático, de alta densidade poética, perpassado de um erotismo sutil, que, quando necessário, se escancara, sem cair na vulgaridade. O sexo é mostrado como um índice de civilidade, muito além da mera função reprodutora. Jurupari, por outro lado, é uma personagem atormentada, desprovida de humanidade, centrada na sua missão, como um herói grego consciente de seu destino, previamente traçado pelos deuses.