João Bosco Botelho
A
importância da cobra nas construções metamórficas da proteção contra a dor, à
morte e aos infortúnios está presente desde muito tempo. A naja enfeita em posição superior e em destaque
a belíssima máscara mortuária de ouro maciço do jovem faraó Tutankamon.
A
associação entre a serpente e a Medicina estava presente na sociedade
babilônica, em torno de 1500 a.C. O deus da cura Ningishzida, da região de
Lagash, era representado por duas cobras enroladas em um bastão.
É
possível estabelecer pelo menos duas imagens simbólicas unindo a cobra à Medicina.
A primeira está ligada ao fato desse animal poder viver acima e abaixo da
terra, mediando dois mundos diferentes. A outra, mais importante, pelas
ligações metafóricas com o renascimento, por meio da renovação periódica da
pele.
O
caminho trilhado pelo imaginário humano na busca da imortalidade ligada à cobra,
também está presente em dois fantásticos registros mais ou menos da mesma época:
1. Rig Veda, onde os Adityas são descritos como
descendentes da cobra porque ao perderem a pele se tornam imortais;
2. Epopéia de Gilgamesh, onde esse herói mítico,
príncipe de Uruk, após vencer incríveis obstáculos para garantir a posse do
vegetal capaz de garantir o renascimento do amigo morto numa batalha, num instante
de descuido, presencia o réptil renovar a pele após comer a planta sagrada, a
plena posse da vida eterna. Restou a convicção da inevitabilidade da morte.
Como
não é possível separar a luta humana para viver para sempre das práticas
médicas, a mais significativa herança ocidental das relações da serpente à
Medicina é oriunda da mitologia grega. De modo geral, o herói grego estava associado
à arte de curar. Grande número de deuses e deusas possuía o dom de curar
doenças e feridas de guerra. Um dos filhos de Apolo, Asclépio, foi educado pelo
centauro Quirão para ser médico. O centauro detinha o completo conhecimento da
música, magia, adivinhação, astronomia e da Medicina, além de ter a maior
habilidade entre todos, a ponto de manejar com igual destreza o bisturi e a
lira.
Asclépio
conquistou fama inimaginável; possuía a delicadeza do tocador de harpa e a
habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em
outros oráculos procuravam os serviços desse deus curador. Muito mais que
cirurgião, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas.
Na famosa trilha de curas extraordinárias, ressuscitou alguns mortos e por essa
razão foi fulminado por Zeus com os raios dos Ciclopes.
Zeus
matou Asclépio porque temia que a ordem natural que rege a vida e a morte de
todos os seres vivos – especialmente a dos homens, das mulheres e das coisas – fossem
subvertidas nas ressurreições dos mortos.
Asclépio
se tornou o maior dos curadores do panteão grego; era celebrado em grandes
festas públicas, no dia 18 de outubro.
Após
a conquista da Grécia pelas legiões romanas, com o passar do tempo, alguns
aspectos da mitologia grega foram absorvidos pelos gregos: mantiveram a
narrativa teogônica e rebatizaram Asclépio de Esculápio.
Logo
após a cristianização do império romano, a partir de Constantino, não ocorreram
mudanças significativas na data de comemoração do dia do Médico no
Ocidente. Muitos afrescos retratando
Asclépio, entre os séculos 5 e 1 a.C., contêm a cobra enrolada no bastão.
Essa
história de longa duração é tão forte que, ainda hoje, entre as alegrias dos
pais plenos de orgulho, quando o filho ou a filha é aprovado no vestibular para
Medicina, é presenteá-lo com o broche ou caneta contendo o milenar símbolo das
práticas médicas: a serpente.