Amigos do Fingidor

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A serpente e a medicina


 

João Bosco Botelho

 

          A importância da cobra nas construções metamórficas da proteção contra a dor, à morte e aos infortúnios está presente desde muito tempo.  A naja enfeita em posição superior e em destaque a belíssima máscara mortuária de ouro maciço do jovem faraó Tutankamon.

          A asso­ciação entre a serpente e a Medicina estava presente na sociedade babilônica, em torno de 1500 a.C. O deus da cura Ningishzida, da região de Lagash, era representado por duas cobras enroladas em um bastão.

         É possível estabelecer pelo menos duas imagens simbólicas unindo a cobra à Medicina. A primeira está ligada ao fato desse animal poder viver acima e abaixo da terra, mediando dois mundos diferentes. A outra, mais importante, pelas ligações metafóricas com o renascimento, por meio da renovação periódica da pele. 

          O caminho trilhado pelo imaginário humano na busca da imortalidade ligada à cobra, também está presente em dois fantásticos registros mais ou menos da mesma época:

1. Rig Veda, onde os Adityas são descri­tos como descendentes da cobra porque ao perderem a pele se tornam imortais;

2. Epopéia de Gilgamesh, on­de esse herói mítico, príncipe de Uruk, após vencer incríveis obstáculos para garantir a posse do vegetal capaz de garantir o renascimento do amigo morto numa batalha, num instante de descuido, presencia o réptil renovar a pele após comer a planta sagrada, a plena posse da vida eterna. Restou a convicção da inevitabilidade da morte.

          Como não é possível separar a luta humana para viver para sempre das práticas médicas, a mais significativa herança ocidental das relações da serpente à Medicina é oriunda da mitologia grega. De modo geral, o herói grego estava associado à arte de curar. Grande número de deuses e deusas possuía o dom de curar doenças e feridas de guerra. Um dos filhos de Apolo, Asclépio, foi educado pelo centauro Quirão para ser médico. O centauro detinha o completo conhecimento da música, magia, adivinhação, astronomia e da Medicina, além de ter a maior habilidade entre todos, a ponto de manejar com igual destreza o bisturi e a lira.

     Asclépio conquistou fama inimaginável; possuía a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doen­tes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os servi­ços desse deus curador. Muito mais que cirurgião, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Na famosa trilha de curas extraordinárias, ressuscitou alguns mortos e por essa razão foi fulminado por Zeus com os raios dos Ciclopes.

          Zeus matou Asclépio porque temia que a ordem natural que rege a vida e a morte de todos os seres vivos – especialmente a dos homens, das mulheres e das coisas – fossem subvertidas nas ressurreições dos mortos.

          Asclépio se tornou o maior dos curadores do panteão grego; era celebrado em grandes festas públicas, no dia 18 de outubro.

          Após a conquista da Grécia pelas legiões romanas, com o passar do tempo, alguns aspectos da mitologia grega foram absorvidos pelos gregos: mantiveram a narrativa teogônica e rebatizaram Asclépio de Esculápio.    

          Logo após a cristianização do império romano, a partir de Constantino, não ocorreram mudanças significativas na data de comemoração do dia do Médico no Ocidente.  Muitos afrescos retratando Asclépio, entre os séculos 5 e 1 a.C., contêm a cobra enrolada no bastão.

          Essa história de longa duração é tão forte que, ainda hoje, entre as alegrias dos pais plenos de orgulho, quando o filho ou a filha é aprovado no vestibular para Medicina, é presenteá-lo com o broche ou caneta contendo o milenar símbolo das práticas médicas: a serpente.