Amigos do Fingidor

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O caos em construção 2/2



(um olhar crítico-poético sobre Oh City – Stages) 

Zemaria Pinto

 

A exposição, distribuída em vários segmentos, salienta a relação com a cidade de Manaus. No texto de apresentação, o artista destaca: “as pinturas abstracionam ruas e os planos codificados dos trânsitos e moradias. Os rios passam no meio e os pontos indicam as vidas expressas”. Lazone, cidade mítica da dramaturgia de Sergio Cardoso, aparece aqui ressignificada nos conjuntos Mhanauscartas, Ethereoplanoviario, Kosmopólismao, Sethembrosete, entre outros. Manaus feia, suja, doente. Grotesca.

Não há como olhar esta exposição com olhos de ver. Não à toa, Fellini pode ser encontrado logo à entrada, anunciando o caos e o delírio. Antes, ela pede uma mirada além do que os olhos que apodrecem podem compreender. Uma visada mental, para além das imagens, debulhando as ideias e, ficcionando-as, friccionando-as para delas extrair o sumo que os olhos não conseguem perceber: expressum dolorem nostrum.

Oh City – Stages é uma exposição em movimento, cinética, ou como escreveria Glauber, kynetyka, fazendo longas ilações sobre a rede nazistalinista que se infiltra na palavra e na vida de todos nós, sem identidade e sem vontade, reduzidos a meros pontos no universo abstrato sergiocardosiano.

Uma exposição do deslocamento: nos videocines, o movimento de autos, o movimento de gente. Nas fotos, o desfoco é o foco. Em Therminalcódigos e Ethereoplanoviario, as máquinas de triturar almas, os corpos sem almas, os rostos amorfos, meros pontos nos quadros. A cidade atravessada pelo rio, em Khaopolinow. O rio figurado em serpente adormecida sob a cidade. Guardiã e carcereira: armado o bote.

Duas câmeras fixas registram a sandice do trânsito de automóveis na barbarapólis. Em outro plano, uma câmera fixa registra o vai e vem na orla do mercadogrande. Num, o tempo do quando, instantâneo esquizofrênico instante. Noutro, o tempo do sempre, da repetição lerda, lesmática, neurótica. Um: aves rapaces rapinam, sangrando os fígados das máquinas. Outro: vermes bípedes, em movimentos centrípetos, indo do nada para o nada e ao nada retornando, mas sempre adiante, reafirmando a autofagia do eterno retorno: não precisamos de luz.

Mothocity. Pequenos quadros figurativos, expressionistas, onde motocicletas e homens não apenas se juntam, mas se fundem e se confundem, como numa misteriosa banda desenhada pintada, que Sergio me segreda é a aventura de Claude Lévi-Strauss, o personagem onipresente, em plena selva selvagem amazônica. Oh tristes trópicos tropicais!

Kosmo/Khaos. “A cidade será sempre um ser em elaboração”! Um prefeito, por mais covarde que fosse, jamais comungaria verdade tal, sem meter um balaço dundum entre os olhos, logo na cena seguinte. A cidade é uma metamorfose multiplicada, uma potência descontrolada, um nervo exposto supurado – é um câncer ensandecido.

Depois de atravessar os círculos infernais urbanos, o último segmento – Albhum – colocado ao fim do salão, metaforiza o perdão dos pecados e a remissão do Ser. Todas as tormentas se dissipam e o visitante reencontra a paz das fantasias, dos sonhos bons, da infância perdida, nas alusões ao cinema e ao jazz. Os pequenos quadros figurativos de Albhum, expressionistas na forma e amorosos na expressão, conduzem o expectante a uma outra realidade, fora da opressão da cidade em desordem, fora da homicida miséria cotidiana. A paz esteja com todos.

Licença plástico-poética na definição do próprio autor, Oh City – Stages é um jogo de armaramar: a cidade em evolução, em movimento, é uma alegoria do caos em construção – interminável e inevitável, por consequência, inenarrável. Uma abstração em si mesmo, o caos é o primeiro e o último estágio do círculo que encarcera o homem na sua consciente e feliz mediocridade.