João
Bosco Botelho
O
mais importante dos mecanicistas foi Marcelo Malpighi (1626-1696), aluno de
Santório. Esse inigualável teórico representa na história da ciência o
pioneirismo na construção do pensamento micrológico, isto é, a visão de
estruturas vivas por meio das lentes de aumento.
Pode-se
afirmar, sem risco de errar na imprudência do exagero, que após as publicações
de Malpighi, a medicina-oficial de distanciou das outras práticas de curas e
começou a própria história como ciência.
O
pensamento microscópico mobilizou a doença da macroestrutura (corpo) para a microestrutura
(célula). Com esse fato se abriu a porta que desvendaria a base de toda a
medicina da atualidade: o diagnóstico microscópico.
Na
atualidade, a maior parte do diagnóstico, tratamento e prognóstico das doenças
que continuam afligindo a humanidade é alicerçada no diagnóstico da infecção ou
do tumor, portanto micrológico, a identificação da doença por meio do microscópio.
Para
que se tenha ideia da grandeza dos estudos de Malpighi, a maior preocupação das
pessoas e dos serviços de saúde, no mundo, nos dias atuais, são os diagnósticos
e tratamentos das infecções e dos tumores, ambos realizados graças à microscopia.
As
descrições de Marcelo Malpighi são empolgantes, plenas do novo que desloca o
anterior: "a pulga é horrível, o mosquito e a traça os mais belos e foi
com grande contentamento que vi como fazem a mosca e outros pequenos animais
para caminhar...".
O
conjunto das novas observações consequentes da utilização das lentes de
aumento, compondo o microscópio rudimentar, se mostrou tão importante que se formaram
associações científicas, onde eram comunicadas e discutidas as descobertas da
microestrutura do corpo humano.
Entre
muitas aplicações imediatas, no século 16, da construção teórica de Malpighi,
se destacou a identificação do ácaro, como agente causador da sarna. Essa
doença da pele, já era conhecida desde os tempos bíblicos como contagiosa, mas
até então, sem explicação de como se dava a contaminação.
Por
outro lado, a certeza de poder fazer o diagnóstico por meio das lentes de
aumento determinou mudança no comportamento do médico, antes mais próximo do
leito do doente, como determinavam os preceitos de Hipócrates, desde o século 4
a.C. Recebeu forte crítica a frieza com que os médicos se ataram à concepção mecanicista, reduzindo o corpo
à máquina.
As
críticas dessa medicina mecanicista atingiu consolidação adequada com as
publicações de Thomas Sydenham (1624-1689), que trabalhou até os últimos anos
da vida voltado à demonstração de que o ponto fundamental da medicina era a
presença do médico na cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem
auxiliar na cura.
Essa
questão crítica da prática médica continua muito atual. Em muitas
circunstâncias, alguns médicos ficam afastados das cabeceiras dos doentes,
somente utilizando os recursos tecnológicos. Essa atitude leva ao enorme hiato que
dificulta a compreensão do componente social no aparecimento e desaparecimento
das doenças.
Algumas
escolas de medicina ainda não se afastaram dos conceitos mecanicistas do
Renascimento. Alguns estudantes de medicina são treinados no diagnosticar da rara
doença cardíaca utilizando sofisticados aparelhos; se diplomam sem saber
diagnosticar a verminose ou conduzir o parto normal.
De
certo modo, a agudização dos conflitos entre médicos e doentes está assentada
na ausência dessa relação humanitária: o médico amigo.