Amigos do Fingidor

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Micrologia das doenças sem perder a bondade




João Bosco Botelho

 

O mais importante dos mecanicistas foi Marcelo Malpighi (1626-1696), aluno de Santório. Esse inigualável teórico representa na história da ciência o pioneirismo na construção do pensamento micrológico, isto é, a visão de estruturas vivas por meio das lentes de aumento.  

Pode-se afirmar, sem risco de errar na imprudência do exagero, que após as publicações de Malpighi, a medicina-oficial de distanciou das outras práticas de curas e começou a própria história como ciência.

O pensamento microscópico mobilizou a doença da macroestrutura (corpo) para a microestrutura (célula). Com esse fato se abriu a porta que desvendaria a base de toda a medicina da atualidade: o diagnóstico microscópico.

Na atualidade, a maior parte do diagnóstico, tratamento e prognóstico das doenças que continuam afligindo a humanidade é alicerçada no diagnóstico da infecção ou do tumor, portanto micrológico, a identificação da doença por meio do microscópio.

Para que se tenha ideia da grandeza dos estudos de Malpighi, a maior preocupação das pessoas e dos serviços de saúde, no mundo, nos dias atuais, são os diagnósticos e tratamentos das infecções e dos tumores, ambos realizados graças à microscopia.

As descrições de Marcelo Malpighi são empolgantes, plenas do novo que desloca o anterior: "a pulga é horrível, o mosquito e a traça os mais belos e foi com grande contentamento que vi como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar...".

O conjunto das novas observações consequentes da utilização das lentes de aumento, compondo o microscópio rudimentar, se mostrou tão importante que se formaram associações científicas, onde eram comunicadas e discutidas as descobertas da microestrutura do corpo humano.

Entre muitas aplicações imediatas, no século 16, da construção teórica de Malpighi, se destacou a identificação do ácaro, como agente causador da sarna. Essa doença da pele, já era conhecida desde os tempos bíblicos como contagiosa, mas até então, sem explicação de como se dava a contaminação.

Por outro lado, a certeza de poder fazer o diagnóstico por meio das lentes de aumento determinou mudança no comportamento do médico, antes mais próximo do leito do doente, como determinavam os preceitos de Hipócrates, desde o século 4 a.C. Recebeu forte crítica a frieza com que os médicos se  ataram à concepção mecanicista, reduzindo o corpo à máquina.

As críticas dessa medicina mecanicista atingiu consolidação adequada com as publicações de Thomas Sydenham (1624-1689), que trabalhou até os últimos anos da vida voltado à demonstração de que o ponto fundamental da medicina era a presença do médico na cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem auxiliar na cura.

Essa questão crítica da prática médica continua muito atual. Em muitas circunstâncias, alguns médicos ficam afastados das cabeceiras dos doentes, somente utilizando os recursos tecnológicos. Essa atitude leva ao enorme hiato que dificulta a compreensão do componente social no aparecimento e desaparecimento das doenças.

Algumas escolas de medicina ainda não se afastaram dos conceitos mecanicistas do Renascimento. Alguns estudantes de medicina são treinados no diagnosticar da rara doença cardíaca utilizando sofisticados aparelhos; se diplomam sem saber diagnosticar a verminose ou conduzir o parto normal.

De certo modo, a agudização dos conflitos entre médicos e doentes está assentada na ausência dessa relação humanitária: o médico amigo.