Amigos do Fingidor

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Curandeiros e adivinhos: agentes de coesão social



João Bosco Botelho

 

      A história da medicina, em certas circunstâncias, evidencia que alguns diagnósticos e tratamentos não mantiveram nenhuma aderência aos saberes da época. Aquelas sociedades, no passado, e outras, nos dias atuais, validam a crítica de Jannie Carlier: "As fronteiras entre adivinhação e medicina são tão vagas que não nos surpreenderá encontrar num tratado médico um prognóstico aventureiro e, num tratado de adivinhação, um diagnóstico médico pertinente."

      Os grupos de doenças comumente relacionadas com esse contundente pressuposto – curas mágicas ou milagrosas como recurso de tratamento pertinente – são aqueles para os quais a medicina não oferece resultados convincentes: alguns tipos de cânceres, certas síndromes articulares dolorosas, determinados distúrbios de comportamento e a maior parte das doenças imunomoduladas.

      Esse conjunto complexo entre diagnóstico e tratamento competentes está intimamente atado ao ainda não desvendado paradoxo fundamental da medicina: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença? Se é que existe o normal e a doença como pressupomos.  

      Nessa construção, mesmo utilizando todos os recursos da tecnologia médico-hospitalar da atualidade, incontáveis doentes morrem sem que os respectivos diagnósticos tenham sido reconhecidos.

      Por outro lado, é notório há milhares de anos o reconhecimento coletivo da existência de homens e mulheres reconhecidas com capacidades especiais para curar e adivinhar à margem de todas as leis da Física. Infelizmente, a Ciência continua sem compreender o significado biológico dessa cura.

      Permanece sem resposta a indagação: o curso da vida pode ser modificado por esse dom? De outro modo, as quatro forças (no macrocosmo: gravitacional, eletromagnética; no nível atômico, pequena força e grande força) que constroem as relações entre as matérias vivas e inertes poderiam ser modificadas magicamente, por meio do milagre?

      Enquanto não há outra resposta, continua prevalecendo o sentido bíblico presente em Tg 1, 17: "Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das Luzes".

      Os primeiros registros nos livros sagrados é possível identificar a intrincada relação de dependência entre essas pessoas especiais com os diversos segmentos sociais das comunidades onde atuavam. Esse nó está relacionado ao pro­cesso da ligação humana ao transcendente por meio da experiência religiosa com o sagrado. A constatação ficou clara a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme, dos povos babilônicos, no segundo milênio a. C., esclarecendo que as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento embutiam significado semelhante.

      É também possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram função equivalente na organiza­ção social. É por esta razão que os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde os primeiros tempos. A posse do dom de curar doenças e malefícios sempre acrescentou mais poder a quem o possuía, colocando‑o em destaque na comunidade.

      Contudo, a manutenção desse poder nunca se evidenciou uniforme nem permanente. A possibilidade de substituição fora vivenciada, de modo contundente, pelos curadores e adivinhos quando, sob outro po­der político, sofriam as imposições do conquistador. Alguns reis citados no Antigo Testamento, como Baal e Astarte (Jz 2, 13), cultuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como curadores e adivinhos ligados ao demônio, pelo fato de não estarem alinhados ao monoteísmo judeu.