Amigos do Fingidor

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O curador divino e a serpente: luta mágica pela vida


João Bosco Botelho


O mais importante curador divino na Grécia antiga foi Asclépio, filho de Apolo, considerado, durante vários séculos, o deus da Medicina. Os doentes que recuperavam a saúde nos templos desse deus grego tornaram públicos os agradecimentos por meio de esculturas especificando o nome do doente e a cura milagrosa obtida. Existem duas particularmente bem documentadas: o caso da cegueira de Phalysios e o das varizes de outro paciente anônimo.
Muitos afrescos retratando Asclépio contêm a serpente enrolada no bastão. A associação da cobra à medicina já estava presente na sociedade babilônica, mil anos antes da pólis grega. Na Babilônia de Hammurabi, o deus da cura Ningishzida, da região de Lagash, era representado por duas serpentes enroladas numa vara de madeira.
A imagem de Asclépio ligada ao réptil dava força aos desprotegidos. Curadores e enfermos veneravam-no, nas cidades gregas. Milhares de peregrinos doentes e deserdados marchavam em procissões, para suplicar nos altares as graças da saúde e da fartura.
É possível estabelecer duas imagens simbólicas, ligando a serpente ao ensejo de recusar a morte. A primeira, ao fato de poder viver acima e abaixo da terra, mediando dois mundos diferentes, em estreito vínculo com a localização subterrânea do mundo invisível. A outra, mais importante, está fincada na crença do renascer, por meio da renovação periódica da pele.
Na Babilônia, a epopéia de Gilgamesh, relacionada com os grandes feitos desse rei, em torno dos anos 2750 a.C., o herói, cansado depois de inúmeras peripécias na busca da planta que proporcionaria a vida eterna, ao acordar, na beira do rio, vê o vegetal ser comido pela serpente, e, impotente, resta-lhe admirar o renascer do bicho e o convencimento da inevitabilidade da morte.
Na Índia antiga, no Rig Veda (I 79,1), escrito entre 1700 e 1100 a.C., os Adityas são descritos como descendentes da serpente porque, ao perderem a pele velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade. Esse extraordinário texto, conhecido como Livro dos Hinos, é o documento mais antigo da literatura hindu.
Esse extraordinário elo entre os curadores com a serpente é uma das heranças metafóricas arcaicas mais interessantes empurrando a luta atávica contra os limites da vida. O poder do curador, representado pela serpente, é o símbolo vivo desse enfrentamento, para modificar o determinismo irremovível da morte.
Asclépio conquistou fama inimaginável; possuía a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doen­tes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os servi­ços desse deus curador. Muito mais cirurgião, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Na famosa trilha de curas extraordinárias, ressuscitou alguns mortos e por essa razão foi fulminado por Zeus com os raios dos Ciclopes. Zeus matou Asclépio porque temia que a ordem natural fosse mudada.
Asclépio, sempre ligado à serpente, se tornou o maior dos curadores do panteão grego; era celebrado em grandes festas públicas, no dia 18 de outubro.
Após a conquista da Grécia pelas legiões romanas, foi mantida a narrativa teogônica entre curadores divinos e a serpente: rebatizaram Asclépio de Esculápio.
Após a cristianização do império romano, o dia 18 de outubro, ligado aos curadores divinos greco-romanos, renasceu associado ao nascimento de Lucas, o apóstolo-medico Lucas, e se manteve até hoje como o Dia do Médico.