João Bosco Botelho
O
mais importante curador divino na Grécia antiga foi Asclépio, filho de Apolo,
considerado, durante vários séculos, o deus da Medicina. Os doentes que recuperavam
a saúde nos templos desse deus grego tornaram públicos os agradecimentos por
meio de esculturas especificando o nome do doente e a cura milagrosa obtida.
Existem duas particularmente bem documentadas: o caso da cegueira de Phalysios
e o das varizes de outro paciente anônimo.
Muitos afrescos retratando Asclépio contêm a serpente enrolada no bastão.
A associação da cobra à medicina já estava presente na sociedade babilônica, mil
anos antes da pólis grega. Na Babilônia de Hammurabi, o deus da cura
Ningishzida, da região de Lagash, era representado por duas serpentes enroladas
numa vara de madeira.
A
imagem de Asclépio ligada ao réptil dava força aos desprotegidos. Curadores e
enfermos veneravam-no, nas cidades gregas. Milhares de peregrinos doentes e
deserdados marchavam em procissões, para suplicar nos altares as graças da saúde
e da fartura.
É
possível estabelecer duas imagens simbólicas, ligando a serpente ao ensejo de
recusar a morte. A primeira, ao fato de poder viver acima e abaixo da terra,
mediando dois mundos diferentes, em estreito vínculo com a localização
subterrânea do mundo invisível. A outra, mais importante, está fincada na
crença do renascer, por meio da renovação periódica da pele.
Na
Babilônia, a epopéia de Gilgamesh, relacionada com os grandes feitos desse rei,
em torno dos anos 2750 a.C., o herói, cansado depois de inúmeras peripécias na
busca da planta que proporcionaria a vida eterna, ao acordar, na beira do rio,
vê o vegetal ser comido pela serpente, e, impotente, resta-lhe admirar o
renascer do bicho e o convencimento da inevitabilidade da morte.
Na
Índia antiga, no Rig Veda (I 79,1), escrito entre 1700 e 1100 a.C., os Adityas são
descritos como descendentes da serpente porque, ao perderem a pele velha, eles
venceram a morte e adquiriram a imortalidade. Esse extraordinário texto, conhecido
como Livro dos Hinos, é o documento mais antigo da literatura hindu.
Esse
extraordinário elo entre os curadores com a serpente é uma das heranças metafóricas
arcaicas mais interessantes empurrando a luta atávica contra os limites da vida.
O poder do curador, representado pela serpente, é o símbolo vivo desse
enfrentamento, para modificar o determinismo irremovível da morte.
Asclépio conquistou fama inimaginável; possuía a
delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os
doentes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os serviços desse
deus curador. Muito mais cirurgião, ele criou as tiras, as ligaduras e as
tentas para drenar as feridas. Na famosa trilha de curas extraordinárias,
ressuscitou alguns mortos e por essa razão foi fulminado por Zeus com os raios
dos Ciclopes. Zeus matou Asclépio porque temia que a ordem natural fosse
mudada.
Asclépio, sempre ligado à serpente, se tornou o maior dos curadores do
panteão grego; era celebrado em grandes festas públicas, no dia 18 de outubro.
Após a conquista da Grécia pelas legiões romanas, foi mantida a narrativa
teogônica entre curadores divinos e a serpente: rebatizaram Asclépio de Esculápio.
Após a cristianização do império romano, o dia 18 de outubro, ligado aos
curadores divinos greco-romanos, renasceu associado ao nascimento de Lucas, o
apóstolo-medico Lucas, e se manteve até hoje como o Dia do Médico.