Amigos do Fingidor

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Prosa & Panela – 9



                                                                                                         Tainá Vieira


As tardes de domingos são sempre nostálgicas para mim. Lembro-me da vida que tive na cidadezinha onde nasci e passei a adolescência. Geralmente, aos finais de semanas a casa de minha mãe-avó ficava cheia, seus filhos e netos vinham reunir-se e celebrar a vida. E, claro, a comilança era farta. De início, logo cedo, eu ia com meu pai-avô comprar o pão, pão caseiro, não existe coisa melhor do que pão caseiro, manteiga e café, logo pela manhã. Também havia tapioca fresquinha que vinha direto da roça da família; pamonha, doce de cupuaçu e doce de manga, que é uma delícia. A casa onde passei a primeira fase de minha vida tinha um quintal imenso, com muitas árvores cheias de frutas: manga, goiaba, abacate (adorava comer abacate com sal e farinha) – e lembro-me também que havia uma árvore de canela; sempre que adoecia minha mãe-avó me dava chá de canela com farinha de tapioca. Sou capaz de sentir agora aquele cheirinho de chá de canela, tão aconchegante como o colo da avó.
Havia também capim santo, ou capim cidreira, minha mãe-avó adorava tomar chá.  Quando ela morreu, meu pai-avô vendeu a metade do terreno e foram junto algumas árvores e plantas. Havia um jardim, simples, mas um jardim, no muro da frente da casa feita de madeira que era bem simples também. Tinha uma trepadeira que se espalhava pela frente toda da casa, era tão bem cuidada que deixava o muro lindo; lembro-me também de rosas brancas no jardim.
Havia várias plantas, minha mãe-avó trocava mudas de plantas com as vizinhas. Lembro-me de uma senhora magra, bem magrela, uma velha que tinha a cara enrugada, ela era tão magra que meu pai-avô dizia que ela não saia de casa quando ventava porque o vento podia levá-la embora, do mesmo jeito que levava as folhas das mangueiras que enfeitavam as ruas e os quintais; quase todos os vizinhos tinham mangueira no quintal. Essa velha magrela era muito amiga de minha mãe-avó e sempre que era o tempo da manga, elas faziam doce de manga lá em casa, mas eu não gostava do trabalho que dava: tinha que colher a manga da árvore, muita manga mesmo, e deixar amadurecer; depois tirava a casca e ralava para colher a polpa, era bem artesanal o processo.  Por último, ia para a panela no fogo para apurar, ou melhor, transformar aquela polpa com açúcar em doce. Tinha que passar horas mexendo aquilo até ficar pronto, e mais, era no fogão de barro, à lenha. Dava muito trabalho, mas o resultado era fantástico.
Há muito que não como doce de manga, eu deixei de gostar da manga em si, mas o doce, ah, como eu queria uma colher agora. Outro dia li um livro chamado A cozinha das Escritoras, que fala um pouco sobre a biografia gastronômica de 10 grandes autoras da literatura mundial; entre elas está Virginia Woolf, que teve uma relação de amor e ódio com a comida. Ela adorava comer maçã, assim como as demais autoras. Comiam tudo de maçã e com maçã. As escritoras tinham uma relação de amizade com a maçã, certamente porque a maçã é feminina, suave e elegante, e, também quando elas ficavam entediadas ou tristes iam colher maçã para comê-las. Agora, porque falei em maçã? Tudo a ver, é fruta, afinal, e tão saborosa quanto a manga, que fez parte da minha vida. Comer, chupar manga, se lambuzar toda comendo manga, era reconfortante. Não tinha macieira na minha cidade, e, para falar a verdade, nunca vi uma árvore de maçã.
O almoço dos finais de semana tinha um cardápio variado. Minha mãe-avó tinha quatro filhas e elas moravam cada uma em lugar diferente, e quando vinham visitar os pais sempre traziam algo para comer. É muito comum isso por lá. Era peixe, carne de porco ou caça do mato, não me lembro de ser proibido comer caça do mato, até uns 15 anos atrás. Peixe assado na folha da bananeira ou galinha à cabidela, não parece comida bem familiar? Ou que tal um leitão assado? Tartaruga, nossa, como aquilo era divino. Sarapatel, comida com sangue, exótico e maravilhoso. E piranha assada na brasa ou caldo de piranha caju; dizem que o caldo do peixe piranha é afrodisíaco, deve ser, têm certas comidas que excitam, ou melhor, as comidas dão prazer, não importam suas origens, ou quem as coma.

Só descobri isso depois; meus pais-avós não deviam saber disso. Enfim, era muita comida, eu e meus primos e meus irmãos adorávamos caldo de cana e cupuaçu, comíamos e brincávamos com os caroços jogando uns aos outros ou atirávamos no muro do quintal. Tudo isso faz parte minha história. E tantas outras comidas que vou lembrando aos poucos. (Há dias que quero apresentar caldo de caridade para a minha filha, mas não tenho em casa a farinha da minha terra, dizem que é a melhor que há, e eu concordo). E para o jantar, sopa de peixe ou mojica – outro dia eu passo a receita, quando for contar a minha relação nada interessante com os peixes – por ora, vou tomar o meu café e lembrar mais um pouco sobre as comidas que minha mãe-avó fazia.  Devia ser proibido avó morrer antes dos setenta anos.