Amigos do Fingidor

sexta-feira, 4 de março de 2016

Discurso de posse no IGHA – 1/3



Zemaria Pinto[1]

Sr. Presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, Dr. Antônio José Souto Loureiro – na pessoa de quem eu cumprimento os demais membros da mesa – senhoras e senhores associados do IGHA, família, amigos, crianças, minhas senhoras, meus senhores...

Na entrada, vocês receberam um livrinho intitulado Nunes Pereira, esboço em cinza e sombras. A finalidade desse livrinho era poupá-los desta fala, porém o ritual de posse manda que se faça uma alocução, especialmente porque a Cadeira de n° 59 será ocupada pela primeira vez. Então, considerando a hipótese de que a leitura integral do livrinho – onde falo da vida e da obra de Nunes Pereira – possa ser eventualmente substituída por atividades mais interessantes, vou lhes comunicar o que julgo essencial nesse trabalho – pelo menos o que for possível na passagem de 48 páginas para 6 laudas, dentro do limite de 12 minutos.
Os que conhecem Nunes Pereira já devem ter ouvido algumas das histórias que se contam sobre ele – e que ele mesmo ajudou a divulgar, alimentando um folclore em torno de sua figura emblemática. Histórias de rebeldia, de boemia, de bonomia e de sexo. Esse anedotário acaba supervalorizado em relação a uma obra que, ainda viçosa e original, é subestimada – pelo que levantei, apenas duas teses de doutorado têm como centro a obra de Nunes Pereira, ambas da PUC-SP: Labirintos do saber: Nunes Pereira e as culturas amazônicas, de Selda Vale da Costa (1997), e Mitopoética dos muiraquitãs, porandubas e moronguetás: ensaios de etnopoesia amazônica, de Harald Pinheiro (2013).
A proposta do livrinho é, ignorando o anedotário, dar uma visão panorâmica sobre a vasta obra de Nunes Pereira, procurando despertar, especialmente nos mais jovens, a curiosidade de conhecer o indispensável da obra do autor de Moronguetá – um Decameron indígena.

Uma vida a ser contada

O cinema nacional, que já sobreviveu à chanchada e à pornochanchada, vivendo agora uma fase de absurda mediocridade, com chanchadas de todas as escalas e matizes, precisaria descobrir esse personagem, que pautou sua vida pela aventura e pelo risco, mas também pelo humor e pela alegria, um herói a um só tempo épico e pícaro – eventualmente, priápico.
Manoel Nunes Pereira nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 26 de junho de 1893, filho de Manoel Nunes Pereira e Felicidade Nunes Pereira. Ele, de ascendência lusitana; ela, de ascendência africana. Durante algum tempo, perdurou um mal-entendido com relação ao ano exato de seu nascimento, desfeito em uma entrevista ao Pasquim, quando ele disse que teve necessidade de alterar o ano para 1891, “para entrar num curso”. Na mesma entrevista, conta que começou a se interessar pela temática indígena quando ouviu, em uma conversa de seu pai com amigos, a descrição de um massacre de franceses contra índios do Amapá. Tinha 3 ou 4 anos. “Os franceses pegavam as crianças pelas pernas e esborrachavam suas cabeças contra as árvores”. A imagem terrível acompanhou o menino por toda sua vida, dedicada, talvez, a entender, vigiar e punir, aquele ato primordial – covarde, selvagem e fora de qualquer padrão de humanidade.
Sobre a grafia correta de seu nome também pairam dúvidas. Manuel ou Manoel? Na maioria das vezes, escreve-se Manuel, que é a forma clássica, portuguesa. Porém, em três documentos reproduzidos do Arquivo Nunes Pereira, da Biblioteca Nacional, o nome grafado é Manoel – inclusive o seu Título de Eleitor amazonense, tirado aos 52 anos, na 2ª Zona Eleitoral de Manaus, constando como residência o Grande Hotel. Nesse mesmo documento, o ano de nascimento confirma-se em 1893.
Desde 1911, entretanto, aos 17, 18 anos, Nunes Pereira já andava por Manaus, como jornalista do Correio do Norte – aliás, onde seu nome aparece, várias vezes, grafado como Manoel. E produzindo sonetos, muitos sonetos, com uma pegada simbolista, mas sem descolar da forma parnasiana. É curioso notar que os jornais da época noticiam o aniversário de uma prima do poeta, Clara Nunes, neta de D. Auta Souza Nunes, bem como a chegada de D. Felicidade, para visitar o filho jornalista. Um ramo da família morava em Manaus?





[1] Discurso proferido na noite de 26 de fevereiro de 2016, por ocasião da posse na Cadeira n° 59 do IGHA, que tem por patrono Nunes Pereira.