Amigos do Fingidor

sexta-feira, 18 de março de 2016

Discurso de posse no IGHA – 3/3


Zemaria Pinto

Moronguetá, síntese de uma obra em afluência

A obra de Nunes Pereira tem duas vertentes temáticas principais: a indígena, em primeiro plano, e a negra. Nosso pequeno trabalho concentrou-se nessas vertentes, onde Moronguetá e A Casa das Minas despontam como desaguadouros dos demais livros-rios, que afluem, sempre, para um ou para outro, caracterizando-se como uma obra em constante movimento, sempre em evolução: uma obra em afluência.
Gestado em mais de 40 anos de viagens pela Amazônia, Moronguetá – um Decameron indígena é o rio principal, o riomar, para onde afluem todos os outros livros-rios, inclusive os de temática negra, todos tributários dele. Em carta a Arthur Reis, em outubro de 1943, 24 anos antes do livro vir à luz, Nunes informava ao amigo a respeito de uma viagem que fizera ao Alto Madeira. Esboçava-se naquela viagem a ideia de Moronguetá, embora o livro já estivesse sendo gestado há muito mais tempo.

Não tivesse escrito mais nada, este livro seria suficiente para marcar o nome de Nunes Pereira entre os mais importantes autores brasileiros do século XX. Publicado em dois volumes, com mais de 840 páginas, o livro divide-se em cinco partes, além de rico material iconográfico, cada uma delas referente a uma Área Cultural: Roraima; Vale do Rio Negro; Rio Solimões; Rio Madeira; e Rios Andirá e Maués. Em cada uma dessas partes, o autor analisa relevo, clima, flora, fauna, antecedentes históricos e situação atual dos indígenas, concluindo cada uma delas com uma antologia de mitos, lendas, estórias e tradições das etnias da área – o “Decameron indígena”, além de um glossário e notas. No final, dando um toque enciclopédico ao conjunto, há um índice de verbetes e um índice remissivo, sendo este classificado por assunto – fazendo de Moronguetá um completo banco de dados de referência antropológica.
Sobre o significado do título, Nunes Pereira esclarece-o logo na introdução. Moronguetá tem o sentido geral de “narrativa de fatos autênticos e imaginários”, podendo, em função do contexto, significar mito, lenda, conto, estória etc. Quanto ao subtítulo, ele “aproveitou” a ideia de seu colega alemão Leopold Frobenius, que em 1910 publicara O Decameron Negro, relacionando narrativas coligidas junto a povos africanos com o clássico renascentista Il Decameron, de Boccaccio. Nunes Pereira, vendo no seu conjunto a mesma relação – o humor e o sexo como eixos das narrativas, não titubeou: Um Decameron Indígena. Não é demais lembrar a lição de Bergson: “não há comicidade fora do que é propriamente humano.” O riso, como o sexo, é um índice de humanidade.
No capítulo “Situação atual dos indígenas”, que se repete em cada uma das cinco partes em que se divide o livro, o tom dominante é sombrio: Nunes Pereira tem consciência de que o avanço da “sifilização” – como ele define com ironia o que nós representamos para o índio, é o ocaso daquela cultura, daquela literatura, daqueles saberes que têm a exata idade do tempo. Mais tarde, em entrevistas, já em idade avançada, ele não se continha e dizia o que em Moronguetá está nas entrelinhas: “O drama do índio é irreversível. O índio vai desaparecer.”
Um dos textos mais contundentes dos modernos Estudos Literários, no Brasil, Uma poética do genocídio, do inesquecível Antônio Paulo Graça, faz uma análise dos dez mais importantes romances que têm o índio como protagonista, e conclui assim:
O tema último do romance indianista é o genocídio, o extermínio total. (...) Todo romance indianista é uma metáfora do genocídio.

Nunes Pereira, leitor desses livros, e vivendo suas aventuras fora da ficção, tem a mesma percepção crítica, com um tempero ainda mais amargo, porque protagonista da tragédia que se encena no dia a dia.
Passados 50 anos desde a primeira edição de Moronguetá, a situação foi aplacada, muitos avanços foram conquistados, mas a ameaça do desaparecimento continua real e concreta. Ficou o livro-riomar como testemunha de um tempo e como um monumento esculpido em papel, tinta e pensamento – fundamental, para a compreensão não só do índio, mas da multiplicidade que consubstancia a nação brasileira.

Livro de Zemaria Pinto, lançado  no dia da posse.
Manoel Nunes Pereira não é apenas um simulacro de Baíra, o grande burlão. Falo no presente: ele é sobretudo um homem de ciência, procurando compreender o problema do índio, penetrando-lhe a mente, interrogando-lhe a alma. E por haver conseguido seu intento contou estórias repletas de poesia, recolhidas em estado bruto na natureza. As dezenas de livros, a participação ativa em congressos, as inúmeras conferências, somadas ao respeito adquirido entre os maiores de seu tempo, não deixam qualquer dúvida sobre sua importância como cientista. Enfim, a diversidade de seu trabalho – como antropólogo, etnólogo, etnógrafo, ictiólogo, economista e sociólogo – merece um aprofundamento para muito além destas parcas palavras.

TAMBARAMÃ!