João Bosco Botelho
Os tratamentos oferecidos pela Medicina para vencer
a dor, na Europa central, no medievo, estavam atados aos preceitos de Hipocrates,
século 4 a.C., e Galeno, século 1 d.C.: o desequilíbrio dos humores levaria às
doenças e, em consequência, alteraria os temperamentos, causando dores.
O famoso médico francês Guy de Chauliac, em
1363, na sua obra Grande Cirurgia, definiu a dor como sendo qualquer fator que
determinasse o desequilíbrio dos humores. Como todos os tratamentos estavam
baseados na intenção de equilibrar os humores por meio de retirada intencional
de sangue e secreções do corpo, os tratamentos consistiam nas sangrias,
vomitórios, cataplasmas e vegetais, como a salsaparrilha, para provocar a diarreia.
Novos entendimentos da dor atados ao sofrimento
coletivo foram provocados quando os países europeus, além de suportarem as
mortes provocadas nas guerras intestinas, foram dizimados pela peste negra. As terríveis dores e sofrimentos antecedendo a
morte inevitável nos pestilentos, mesmo sendo interpretados como sinais da cólera
de Deus, empurraram a busca de respostas que pudessem cessar o desespero.
O Renascimento trouxe o desvendar dos corpos.
Os estudos da anatomia são retomados e, em 1543, é publicado o extraordinário livro La fabrique du corps humain, de André Vesálio. Os corpos abertos e
o afrouxamento das proibições pela Igreja impulsionam novos avanços.
As mudanças já iniciadas, o desvendar dos
corpos pela anatomia e a posição dos filósofos, mesmo com a condenação de Galileu,
em 1633, instigam novas leituras da dor, acompanhadas de inevitáveis rupturas
com o cristianismo.
Destacam-se, no século 17, o médico inglês
Harvey, em 1628, com a publicação do Exercitatio
anatomica de motu cordis et sanguinis in anima, demonstrando os erros de
Galeno sobre a circulação do sangue e Marcelo Malpighi, em 1666, com o livro De viscerum structura, inaugurando a
micrologia. Esses livros determinaram o início do processo de enfraquecimento das
teorias de Hipócrates e Galeno, até então aceitas como dogmas nas universidades
cristãs.
Na
segunda metade do século 18, os intelectuais laicizaram a dor. Na França, as rápidas mudanças sociais provocadas
pela revolução trouxeram à lembrança os horrores da peste negra e induziram a maior valorização da dor sob a
compreensão laica. Entre essas mudanças, destacaram-se: proibição dos sepultamentos
nas igrejas, construção dos esgotos e
reservatórios de água potável, normas rígidas de higiene pública, desvinculação
das universidades do poder eclesial e construção de hospitais sem laço
administrativo com a Igreja.
As práticas médicas oitocentistas
retomaram nova tentativa de ordenar a dor, adaptando-a às concepções da
fisiologia e do pensamento micrológico: dor tensiva (redução da fratura); dor
pulsátil (acompanha o ritmo das artérias); dor gradual (presença de líquido na cavidade, como da hidropisia; dor
pruriginosa (no prurido intenso, como na sarna).
O século 19 colhendo os frutos
da anatomia e da fisiologia amadurece a busca da dor no nível celular, em
estreita consonância com a tendência de levar a doença à célula, iniciada no
século 17 por Marcelo Malpighi.
No século 20, os progressos
para os tratamentos das dores alcançaram dimensão nunca imaginada ser possível.
Os estudos genéticos possibilitaram que os analgésicos conseguissem controlar a
dor lancinante contínua, como as causadas por alguns tipos de câncer na fase
terminal.