Amigos do Fingidor

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A teoria da letra-poema ou de como e porque Bob Dylan ganhou – merecidamente! – o Nobel de Literatura 1/5



Zemaria Pinto

Este texto não é nada (ou quase) do que promete o título: não adianta procurar aqui por Bob Dylan, prêmio Nobel ou pela Real Academia Sueca. Trata-se do capítulo “Criando uma teoria”, do meu livro O texto nu (Manaus: Valer, 2009; 2011). Baseado em uma palestra que dei na Quarta Literária, na noite de 6 de março de 2002, o referido capítulo procura justificar letra de música como poesia – isto é, como literatura – na contramão de beócios e boçais que ignoram a relação milenar da poesia com a música e desta com a poesia – like a rolling stone...


Música e poesia – convergências e dissonâncias

A discussão é antiga: letra de música popular é poesia? Vamos tentar, se não colocar um ponto final, o que seria por demais pretensioso, elucidar alguns pontos que poderão ajudar o leitor a formar uma opinião. No capítulo sobre a poesia lírica, dissemos que esta era “expressa inicialmente por meio do canto” e era “escrita para ser lida, mas, eventualmente, também cantada”. As primeiras aspas guardam um componente histórico; as segundas já dão uma pista sobre o que pensamos a respeito. Vamos à história.
A poesia é anterior à escrita. Como processo mnemônico para registrar o poema usava-se musicá-lo. A expressão “lírica” deriva de lira, o instrumento comumente usado, pelo menos na Grécia, para acompanhar o poema. O leitor mais atento pode estar se perguntando: não seria o inverso? A música popular é anterior à poesia como a conhecemos hoje? Sem dúvida, é uma outra forma de ver a questão. É preciso levar em conta, entretanto, que com o advento da escrita, o poema passou a ser registrado, enquanto a música continuou dependendo da memória para ser preservada (a notação musical como a conhecemos hoje data do século XI, embora os indícios da existência de códigos de notação musical datem do século VIII a.C.). Não à toa, o poema guarda relações com a música, como a estrofação e a métrica. A rima, entretanto, um recurso muito musical, não era usada pelos antigos, sendo adotada somente a partir da Idade Média, período em que pontificaram os trovadores – cujos poemas ficaram para além das melodias que os acompanhavam.
Essa relação com a música se manifesta também nos nomes das formas poemáticas, que vimos no capítulo sobre a poesia, como a ode – que quer dizer, literalmente, canto –, o madrigal, a balada, o rondel, a canção, a cantiga... E não nos esqueçamos de Pound, para quem a musicalidade do poema, a melopeia, é atributo essencial do poema. Para melhor compreensão da nossa proposta, de agora em diante passaremos a chamar de canção o conjunto formado por poesia e música.
Cabe observar, contudo, o caráter generalizante do que estamos chamando aqui de “poesia”, pois nem sempre, como pretendemos demonstrar, haverá poesia nas palavras veiculadas pela música. Aliás, às vezes nem música há, tamanha a pobreza de certas canções. Mas essa é uma outra história. Então, para que desçamos ao degrau mais rente, vamos chamar simplesmente de “letra” ao conjunto de palavras contido na canção.

(Continua na próxima sexta-feira)