Zemaria Pinto
A teoria da letra-poema
Tomando por base a música popular brasileira, podemos inferir
que a nossa proposta é válida para canções em qualquer língua. E quando nos
referimos à música popular brasileira não estamos pretendendo falar apenas de
um segmento, normalmente identificado com o lado “culto” da música popular, que
acabou virando categoria: a famigerada MPB. Ficam em maus lençóis os que assim
agem, por não ter como classificar Luiz Gonzaga, por exemplo. É forró ou MPB? E
Martinho da Vila – é samba ou MPB? Cazuza – rock ou MPB? Os exemplos abundam. Então,
para nós, tudo é mpb.
Uma letra de música popular pode ser enquadrada em uma das
seguintes categorias: poema, letra poética, letra funcional ou letra ordinária.
Para efeito didático, dividiremos a categoria poema em duas subcategorias
distintas, o poema-letra e a letra-poema, cuja identificação vai responder
àquela pergunta inicial sobre se letra de música popular é ou não é poesia.
Poema-letra. Nesta categoria, classificamos poemas publicados antes, em
livros, e posteriormente musicados, como “Funeral do Lavrador”, título dado
pelo compositor ao trecho citado de Morte
e Vida Severina, no capítulo anterior, musicado por Chico Buarque. Os
exemplos são inúmeros, embora nem sempre a melodia esteja no mesmo nível do
texto. Camões, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Drummond, Cecília Meireles,
Mário Quintana, entre tantos, tiveram seus poemas transformados em canções. Não
entramos no mérito quanto à qualidade dos poemas, pois, ordinariamente, são
trabalhos consagrados, de autores idem.
Letra-poema. Aqui, começamos a fazer julgamento crítico, isto é, de
valor. O que nos leva a classificar uma letra inédita como poema, senão sua
qualidade intrínseca de poema? Letras-poemas são encontradas na obra de
compositores como Chico Buarque (Construção,
As vitrines, Mar e lua), Caetano Veloso (Não identificado, Sampa, Terra), Gilberto Gil (Metáfora, Oriente, Super-homem) ou Paulinho da Viola (Sinal fechado, Dança da solidão, Nada de
novo). Mas autores pouco badalados, como Paulo César Pinheiro (Viagem, Jogo de Angola, Espelho),
criaram – no caso, em parceria – verdadeiros clássicos da poesia brasileira.
Para reconhecer um poema-letra o leitor deve saber reconhecer um bom poema;
este tem que comunicar muito além do óbvio. A poesia limita-se com as artes
plásticas, ao transmitir imagens criadas a partir de palavras que o senso comum
não admite, e com a música, dada a musicalidade comum ao poema. Mas é ao
promover “a dança do intelecto entre as palavras”, como dizia Pound, que se
percebe a verdade transfigurada da poesia. Como tudo o mais na vida, é uma
questão de exercício. Se você se exercita para reconhecer a verdade ela acabará
se mostrando a você, mesmo em forma de poesia.
(Continua na próxima sexta-feira)