Amigos do Fingidor

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A teoria da letra-poema ou de como e porque Bob Dylan ganhou – merecidamente! – o Nobel de Literatura 2/5


Zemaria Pinto 

A teoria da letra-poema

Tomando por base a música popular brasileira, podemos inferir que a nossa proposta é válida para canções em qualquer língua. E quando nos referimos à música popular brasileira não estamos pretendendo falar apenas de um segmento, normalmente identificado com o lado “culto” da música popular, que acabou virando categoria: a famigerada MPB. Ficam em maus lençóis os que assim agem, por não ter como classificar Luiz Gonzaga, por exemplo. É forró ou MPB? E Martinho da Vila – é samba ou MPB? Cazuza – rock ou MPB? Os exemplos abundam. Então, para nós, tudo é mpb.
Uma letra de música popular pode ser enquadrada em uma das seguintes categorias: poema, letra poética, letra funcional ou letra ordinária. Para efeito didático, dividiremos a categoria poema em duas subcategorias distintas, o poema-letra e a letra-poema, cuja identificação vai responder àquela pergunta inicial sobre se letra de música popular é ou não é poesia.
Poema-letra. Nesta categoria, classificamos poemas publicados antes, em livros, e posteriormente musicados, como “Funeral do Lavrador”, título dado pelo compositor ao trecho citado de Morte e Vida Severina, no capítulo anterior, musicado por Chico Buarque. Os exemplos são inúmeros, embora nem sempre a melodia esteja no mesmo nível do texto. Camões, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Drummond, Cecília Meireles, Mário Quintana, entre tantos, tiveram seus poemas transformados em canções. Não entramos no mérito quanto à qualidade dos poemas, pois, ordinariamente, são trabalhos consagrados, de autores idem.
Letra-poema. Aqui, começamos a fazer julgamento crítico, isto é, de valor. O que nos leva a classificar uma letra inédita como poema, senão sua qualidade intrínseca de poema? Letras-poemas são encontradas na obra de compositores como Chico Buarque (Construção, As vitrines, Mar e lua), Caetano Veloso (Não identificado, Sampa, Terra), Gilberto Gil (Metáfora, Oriente, Super-homem) ou Paulinho da Viola (Sinal fechado, Dança da solidão, Nada de novo). Mas autores pouco badalados, como Paulo César Pinheiro (Viagem, Jogo de Angola, Espelho), criaram – no caso, em parceria – verdadeiros clássicos da poesia brasileira. Para reconhecer um poema-letra o leitor deve saber reconhecer um bom poema; este tem que comunicar muito além do óbvio. A poesia limita-se com as artes plásticas, ao transmitir imagens criadas a partir de palavras que o senso comum não admite, e com a música, dada a musicalidade comum ao poema. Mas é ao promover “a dança do intelecto entre as palavras”, como dizia Pound, que se percebe a verdade transfigurada da poesia. Como tudo o mais na vida, é uma questão de exercício. Se você se exercita para reconhecer a verdade ela acabará se mostrando a você, mesmo em forma de poesia.

(Continua na próxima sexta-feira)