Mauri
Mrq
Ah,
como nadava bem! Macadâmia era esguia, tacos e pernas alongadas rionegrando* na
Ponta Negra, ano em que a seleção brasileira ganhou a Copa de 70. O sol lascava
o crânio do amazonense e ela nessa flumilândia*. Seu jeito de ser, a educação
de sua ascendência britânica, integrava-se à alma da cidade, assaltando o
tempo de nossa contemplação ao comer aquele kikão com tanto gosto, na praça de
São Sebastião. Era uma moça dos olhos dançantes assistindo a um filme no Guarany.
Subindo
a avenida Getúlio Vargas à sombra dos Oitizeiros com o passo levitado, escorria
de seus cabelos o suor nas pedras do passeio tradicional de Manaus, exalando o
vapor do asfalto a caminho do colégio N. Sra. Auxiliadora, onde estudava.
Chegando ao costumeiro matutino destino, costumava sentar-se em um banco de
jardim sob frondosa Acácia.
Macadâmia,
com seu estado crepuscular, assaltava a inveja de suas colegas, e Petrúcia,
sendo altiva e implicante, dominando algumas normalistas, regularmente
implicavam com Macadâmia, e ela relevava. Mas, nesse dia, Petrúcia exagerou, puxando os cabelos de Macadâmia, fazendo com que caísse. Petrúcia
gabava o feito a suas amigas, quando Macadâmia levanta-se, tirando um lápis da
bolsa e em direção à perversa, enfia o grafite em sua cabeça. Com o susto da
reação inesperada de Macadâmia, afugenta-se com medo da freira que vinha em
direção à chacrinha. Abordada, Macadâmia não denunciou o fato.
Posteriormente
quando se avistavam, mudavam de trilho como trem, apesar de Macadâmia almejar
desfazer o mal-entendido com Petrúcia, apesar de ter sido sempre perseguida,
debita a um sequestro emocional juvenil sua reação. Mas fatos não precisam de
nossa concordância para ser o que são.
Macadâmia
era um ser alternante, conduzindo sua vida num emaranhado de dúvidas.
Intuitiva, nos escritos poéticos, pintando aquarelas e fazendo verdadeiras
miniaturas com desenhos em caixa de fósforo, sendo o lápis sua solitária ferramenta,
e tendo enfiado este instrumento na cabeça de Petrúcia, passou a usar somente
esferográfica, Bic escrita fina.
Certo
dia, após tomar um milk shake na Lobrás, dirigiu-se a Drogaria Rosas. Quando
efetuava o pagamento de seu produto no caixa, um bandido oferece um assalto
para seu desespero e bem ao seu lado. Na ação, quando o ladrão pousa rapidamente
a arma apressando a retirada do dinheiro da registradora, Macadâmia, num
impulso, reage desferindo com força sua esferográfica de ponta-fina, que
costumeiramente segurava como se fosse um terço, como um prego, crucificando a
mão do meliante no balcão, fazendo com que soltasse o revólver, que cai no
chão, sendo dominado em seguida pelos clientes.
Macadâmia
queria continuar a escrever, mas ficou traumatizada com sua reação perfurando a
mão do Sapeca, nome que veio a saber do criminoso após o assalto da Drogaria.
Macadâmia
passou a escrever com giz de cera, e escrevia cadernos com poemas, contos e seu
diário, e os guardava sem mais relê-los. Um dia, a pedido de uma amiga e
professora que conhecia seu talento, reuniu seus poemas para inscrevê-los em um
concurso de poesia nacional. Quando foi separar os cadernos para entregar, ao
abri-los, se assustou ao ver tudo apagado. Com o atrito das páginas, a umidade,
a escrita se desfez, como que transformada em aquarela de giz de cera. Macadâmia
entrou em desespero pela perda total do que tinha feito. Ficou deprimida e surtada.
Passou a escrever com giz de lousa nas paredes de seu quarto, fragmentos de
seus poemas que lhe restavam na memória, na angústia de saber que jamais os
recuperaria. Esgotada, desmaiou com unhas quebradas e dedos arranhados,
adornada de giz sob os lençóis.
Ao
acordar, percorrendo a visão pelas paredes transformadas em instalações,
retomou em seu ser a ira da lembrança trágica de sua perda. Atira-se nas
paredes, arrastando a venta, aspirando o giz de seus escritos, alucinando seu
transtorno, entupindo as narinas, sufocando a respiração, cimentando os pulmões
com o pó das palavras perdidas na composição de cenas, de uma jovem tão jovem
no seu existir, macerando com sua estória para aqui que ficamos, digerir a vida
que se nos apresenta.
(*) Palavras inventadas por Ramayana de Chevalier:
Flumilândia: Região em que dominam águas, ou seja, a
Amazônia.
Rionegrando: Quando hidroaviões chegavam após
Revolução de 30, e desciam na Baía do Rio Negro – rionegravam.