Amigos do Fingidor

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Macadâmia


Mauri Mrq

Ah, como nadava bem! Macadâmia era esguia, tacos e pernas alongadas rionegrando* na Ponta Negra, ano em que a seleção brasileira ganhou a Copa de 70. O sol lascava o crânio do amazonense e ela nessa flumilândia*. Seu jeito de ser, a educação de sua ascendência britânica, integrava-se à alma da cidade, assaltando o tempo de nossa contemplação ao comer aquele kikão com tanto gosto, na praça de São Sebastião. Era uma moça dos olhos dançantes assistindo a um filme no Guarany.
Subindo a avenida Getúlio Vargas à sombra dos Oitizeiros com o passo levitado, escorria de seus cabelos o suor nas pedras do passeio tradicional de Manaus, exalando o vapor do asfalto a caminho do colégio N. Sra. Auxiliadora, onde estudava. Chegando ao costumeiro matutino destino, costumava sentar-se em um banco de jardim sob frondosa Acácia.
Macadâmia, com seu estado crepuscular, assaltava a inveja de suas colegas, e Petrúcia, sendo altiva e implicante, dominando algumas normalistas, regularmente implicavam com Macadâmia, e ela relevava. Mas, nesse dia, Petrúcia exagerou, puxando os cabelos de Macadâmia, fazendo com que caísse. Petrúcia gabava o feito a suas amigas, quando Macadâmia levanta-se, tirando um lápis da bolsa e em direção à perversa, enfia o grafite em sua cabeça. Com o susto da reação inesperada de Macadâmia, afugenta-se com medo da freira que vinha em direção à chacrinha. Abordada, Macadâmia não denunciou o fato.
Posteriormente quando se avistavam, mudavam de trilho como trem, apesar de Macadâmia almejar desfazer o mal-entendido com Petrúcia, apesar de ter sido sempre perseguida, debita a um sequestro emocional juvenil sua reação. Mas fatos não precisam de nossa concordância para ser o que são.
Macadâmia era um ser alternante, conduzindo sua vida num emaranhado de dúvidas. Intuitiva, nos escritos poéticos, pintando aquarelas e fazendo verdadeiras miniaturas com desenhos em caixa de fósforo, sendo o lápis sua solitária ferramenta, e tendo enfiado este instrumento na cabeça de Petrúcia, passou a usar somente esferográfica, Bic escrita fina.
Certo dia, após tomar um milk shake na Lobrás, dirigiu-se a Drogaria Rosas. Quando efetuava o pagamento de seu produto no caixa, um bandido oferece um assalto para seu desespero e bem ao seu lado. Na ação, quando o ladrão pousa rapidamente a arma apressando a retirada do dinheiro da registradora, Macadâmia, num impulso, reage desferindo com força sua esferográfica de ponta-fina, que costumeiramente segurava como se fosse um terço, como um prego, crucificando a mão do meliante no balcão, fazendo com que soltasse o revólver, que cai no chão, sendo dominado em seguida pelos clientes.
Macadâmia queria continuar a escrever, mas ficou traumatizada com sua reação perfurando a mão do Sapeca, nome que veio a saber do criminoso após o assalto da Drogaria.
Macadâmia passou a escrever com giz de cera, e escrevia cadernos com poemas, contos e seu diário, e os guardava sem mais relê-los. Um dia, a pedido de uma amiga e professora que conhecia seu talento, reuniu seus poemas para inscrevê-los em um concurso de poesia nacional. Quando foi separar os cadernos para entregar, ao abri-los, se assustou ao ver tudo apagado. Com o atrito das páginas, a umidade, a escrita se desfez, como que transformada em aquarela de giz de cera. Macadâmia entrou em desespero pela perda total do que tinha feito. Ficou deprimida e surtada. Passou a escrever com giz de lousa nas paredes de seu quarto, fragmentos de seus poemas que lhe restavam na memória, na angústia de saber que jamais os recuperaria. Esgotada, desmaiou com unhas quebradas e dedos arranhados, adornada de giz sob os lençóis.
Ao acordar, percorrendo a visão pelas paredes transformadas em instalações, retomou em seu ser a ira da lembrança trágica de sua perda. Atira-se nas paredes, arrastando a venta, aspirando o giz de seus escritos, alucinando seu transtorno, entupindo as narinas, sufocando a respiração, cimentando os pulmões com o pó das palavras perdidas na composição de cenas, de uma jovem tão jovem no seu existir, macerando com sua estória para aqui que ficamos, digerir a vida que se nos apresenta. 


(*) Palavras inventadas por Ramayana de Chevalier:
Flumilândia: Região em que dominam águas, ou seja, a Amazônia.
Rionegrando: Quando hidroaviões chegavam após Revolução de 30, e desciam na Baía do Rio Negro – rionegravam.