Zemaria Pinto
O narrador infiel
Elemento fundamental da narrativa, o
narrador tende a passar despercebido do leitor menos experiente, que o confunde
com o próprio autor. E muito autores alimentam essa crença, não por desprezo ou
zombaria, mas por estratégia narrativa: a palavra do autor, ainda que falsa, empresta
verossimilhança à verdade da ficção.
Basicamente, há dois tipos de narradores,
conforme o ponto de vista adotado: o narrador-personagem, que narra na primeira
pessoa; e o narrador pressuposto, que conduz a narrativa na terceira pessoa –
sua “existência” é pressuposta, uma vez que alguém, que o leitor não
identifica, está conduzindo a narrativa. O narrador-personagem participa dos
fatos narrados: pode ser protagonista, secundário ou testemunha – neste caso,
mesmo não participando da trama, tem conhecimento dela e sua narrativa
limita-se a esse conhecimento. Já o narrador pressuposto tem uma visão externa
dos fatos narrados, mas, ao contrário do narrador-testemunha, é onisciente:
como um “deus”, ele tem conhecimento dos mínimos detalhes de sua narrativa,
inclusive do pensamento de suas personagens (PINTO, p. 57-61).
O narrador de A selva é um narrador
onisciente. E, se quisermos nos aprofundar um pouco mais na tipologia, trata-se
de um narrador onisciente intruso, pois emite juízos de valor e tece
considerações que podem orientar ou confundir o leitor.
Neste ponto, tenho que me valer de um
axioma da teoria da literatura: todo narrador de ficção, não importa seu ponto
de vista, é uma personagem – e como tal transita numa dimensão espaço-tempo imaginada
pelo autor, e, portanto, confinada à criação ficcional. Isto significa, sendo
bem objetivo, que nenhum, absolutamente nenhum narrador é confiável!
Para ilustrar, lembro Bentinho,
narrador-personagem de Dom Casmurro (1899): talvez nem Machado de Assis
duvidasse da traição de Capitu, até que se questionou a confiabilidade do
narrador. Bentinho narra movido pelo monstro do ciúme e todas as suas “evidências”
são apenas imaginadas: não há uma carta, um bilhete, um testemunho – nem mesmo
um lenço! – que sirva de prova ao infeliz Bentinho, com seu ciúme desmedido e
doentio.[1]
Nunes Pereira relata que, ao visitar o
seringal Paraíso, em 1938, 24 anos após a partida de Ferreira de Castro,
encontrou casualmente uma carta do escritor, pedindo ao então gerente do
seringal fotos atualizadas e uma prosaica amostra da terra local, que o
romancista pretendia que fosse espalhada sobre sua sepultura... Ao questionar o
gerente sobre se respondera à carta e atendera aos pedidos, obteve como
resposta esta pérola:
– Não respondi e
nem mandei o que me pediu. Aquele galego trabalhou aqui muitos anos. E escreveu
um romance, cujos personagens eram meus parentes e amigos, ridicularizando
alguns deles. E revelou que, à socapa, ia espiar minha tia no banheiro... A
carta já está aqui há mais de um ano. Eu não pretendo responder e nem sequer
enviar o que me foi pedido. (PEREIRA, p. 101)
Um fato revelador foi relatado por Leandro
Tocantins, em artigo publicado 25 anos depois da morte do escritor. No livro de
Ferreira de Castro, há um encontro entre Alberto e o comendador J. B. de
Aragão, “célebre em toda a Amazónia, pela sua enorme fortuna, vastidão de
negócios e curiosa biografia” (CASTRO, 1989a, p. 57).[2] Para Tocantins, em
conversa reservada, o autor confidenciara que o episódio de fato aconteceu
consigo, mas o comendador era outro: J. G. de Araújo (apud BRAGA, p.
28).
Primeiro, temos o caso de um leitor que
confunde a personagem fictícia com o autor, situação típica entre leitores de A selva. O segundo caso ilustra com
perfeição a infidelidade do narrador: jamais saberemos o que motivou Ferreira
de Castro a substituir um comendador pelo outro, mas bem que ele poderia ter
inventado um terceiro nome, evitando comprometer um patrício. Mas a chave do
realismo pedia um nome. E afinal, ou um ou outro, ambos eram parasitas de
seringueiros.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às
segundas-feiras.
[1] O
primeiro a colocar Bentinho em suspeição foi José Veríssimo, ainda em 1900. Na
década de 1930, Lúcia Miguel Pereira também põe em dúvida a qualificação do
narrador. Mas foi só em 1960, com a publicação nos Estados Unidos de O Otelo
brasileiro de Machado de Assis, de Helen Caldwell, que a dúvida “rachou”,
literalmente, os leitores de Dom Casmurro, entre os que acreditam em
Bentinho e os que defendem Capitu. Mas nem aqueles podem negar a incerteza que
o Bruxo do Cosme Velho plantou no ar. Para sempre.
[2] Todas
as citações do romance A selva têm
uma mesma fonte (CASTRO, 1989a), mencionada nas referências. Deste ponto em diante,
citarei apenas as páginas onde as mesmas se encontram.