Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 5/14


Zemaria Pinto

 

O narrador infiel

Elemento fundamental da narrativa, o narrador tende a passar despercebido do leitor menos experiente, que o confunde com o próprio autor. E muito autores alimentam essa crença, não por desprezo ou zombaria, mas por estratégia narrativa: a palavra do autor, ainda que falsa, empresta verossimilhança à verdade da ficção.

Basicamente, há dois tipos de narradores, conforme o ponto de vista adotado: o narrador-personagem, que narra na primeira pessoa; e o narrador pressuposto, que conduz a narrativa na terceira pessoa – sua “existência” é pressuposta, uma vez que alguém, que o leitor não identifica, está conduzindo a narrativa. O narrador-personagem participa dos fatos narrados: pode ser protagonista, secundário ou testemunha – neste caso, mesmo não participando da trama, tem conhecimento dela e sua narrativa limita-se a esse conhecimento. Já o narrador pressuposto tem uma visão externa dos fatos narrados, mas, ao contrário do narrador-testemunha, é onisciente: como um “deus”, ele tem conhecimento dos mínimos detalhes de sua narrativa, inclusive do pensamento de suas personagens (PINTO, p. 57-61).

O narrador de A selva é um narrador onisciente. E, se quisermos nos aprofundar um pouco mais na tipologia, trata-se de um narrador onisciente intruso, pois emite juízos de valor e tece considerações que podem orientar ou confundir o leitor.

Neste ponto, tenho que me valer de um axioma da teoria da literatura: todo narrador de ficção, não importa seu ponto de vista, é uma personagem – e como tal transita numa dimensão espaço-tempo imaginada pelo autor, e, portanto, confinada à criação ficcional. Isto significa, sendo bem objetivo, que nenhum, absolutamente nenhum narrador é confiável!

Para ilustrar, lembro Bentinho, narrador-personagem de Dom Casmurro (1899): talvez nem Machado de Assis duvidasse da traição de Capitu, até que se questionou a confiabilidade do narrador. Bentinho narra movido pelo monstro do ciúme e todas as suas “evidências” são apenas imaginadas: não há uma carta, um bilhete, um testemunho – nem mesmo um lenço! – que sirva de prova ao infeliz Bentinho, com seu ciúme desmedido e doentio.[1]

Nunes Pereira relata que, ao visitar o seringal Paraíso, em 1938, 24 anos após a partida de Ferreira de Castro, encontrou casualmente uma carta do escritor, pedindo ao então gerente do seringal fotos atualizadas e uma prosaica amostra da terra local, que o romancista pretendia que fosse espalhada sobre sua sepultura... Ao questionar o gerente sobre se respondera à carta e atendera aos pedidos, obteve como resposta esta pérola:

 

– Não respondi e nem mandei o que me pediu. Aquele galego trabalhou aqui muitos anos. E escreveu um romance, cujos personagens eram meus parentes e amigos, ridicularizando alguns deles. E revelou que, à socapa, ia espiar minha tia no banheiro... A carta já está aqui há mais de um ano. Eu não pretendo responder e nem sequer enviar o que me foi pedido. (PEREIRA, p. 101)

 

Um fato revelador foi relatado por Leandro Tocantins, em artigo publicado 25 anos depois da morte do escritor. No livro de Ferreira de Castro, há um encontro entre Alberto e o comendador J. B. de Aragão, “célebre em toda a Amazónia, pela sua enorme fortuna, vastidão de negócios e curiosa biografia” (CASTRO, 1989a, p. 57).[2] Para Tocantins, em conversa reservada, o autor confidenciara que o episódio de fato aconteceu consigo, mas o comendador era outro: J. G. de Araújo (apud BRAGA, p. 28).

Primeiro, temos o caso de um leitor que confunde a personagem fictícia com o autor, situação típica entre leitores de A selva. O segundo caso ilustra com perfeição a infidelidade do narrador: jamais saberemos o que motivou Ferreira de Castro a substituir um comendador pelo outro, mas bem que ele poderia ter inventado um terceiro nome, evitando comprometer um patrício. Mas a chave do realismo pedia um nome. E afinal, ou um ou outro, ambos eram parasitas de seringueiros.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 


[1] O primeiro a colocar Bentinho em suspeição foi José Veríssimo, ainda em 1900. Na década de 1930, Lúcia Miguel Pereira também põe em dúvida a qualificação do narrador. Mas foi só em 1960, com a publicação nos Estados Unidos de O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de Helen Caldwell, que a dúvida “rachou”, literalmente, os leitores de Dom Casmurro, entre os que acreditam em Bentinho e os que defendem Capitu. Mas nem aqueles podem negar a incerteza que o Bruxo do Cosme Velho plantou no ar. Para sempre.

 

[2] Todas as citações do romance A selva têm uma mesma fonte (CASTRO, 1989a), mencionada nas referências. Deste ponto em diante, citarei apenas as páginas onde as mesmas se encontram.