Amigos do Fingidor

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 7/14

Zemaria Pinto

 

O entrecho

Experimentado nos enredos mirabolantes das primeiras histórias que escreveu, e que rejeitaria mais tarde, Ferreira de Castro, ao compor A selva, pensou o entrecho desta de maneira totalmente diversa daquelas:

 

Pretendera realizar um livro de argumento muito simples, tão possível, tão natural, que não se sentisse mesmo o argumento. Um livro monótono porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o próprio cenário, em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos induzisse ao exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória, ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de carne, sangue e osso. (CASTRO, 1989b, p. 22)

 

A selva limita-se a isso que o próprio autor admite como sua “ambição”: uma história simples, com longas descrições monótonas, onde – complexa, como nenhum ser humano – a personagem de maior relevo, embora na função de antagonista, é a própria selva. Além desta, um outro vilão se destaca no Paraíso: o impulso sexual reprimido. É buscando anular a diferença entre realidade e ficção que o realismo de A selva se resume em um determinismo francamente naturalista, pois há uma tese a defender: sendo produto de seu entorno, homem nenhum resiste ao jugo do monstro selvático, que dobra, humilha e destrói a todos que o enfrentam. Uma óbvia adesão ao infernismo.[1]

Alberto tem 26 anos quando chega ao Brasil, vindo da Espanha, onde esteve refugiado após a derrota dos rebeldes monarquistas portugueses, no início de 1919. Na conversa com o comendador Aragão, ele informa:

 

– Eu sou um exilado político. Sou monárquico e tomei parte na última revolta de Monsanto, de que vossa excelência, decerto, ouviu falar… (p. 59)

 

Eles pretendiam restaurar a monarquia, derrubada nove anos antes, mas foram repelidos pelos republicanos. Contrariando os códigos realistas, o romance não informa datas. Tomemos então o ano de 1919 – quando aconteceu a revolta, em janeiro – como parâmetro, porque é a única data referida, ainda que indiretamente, sendo, certamente, o ano da chegada de Alberto no Brasil. Sua permanência pode ser medida pelo tempo que se passou até a promulgação da anistia aos revoltosos, o que aconteceria em 9 abril de 1921 (SERRANO, p. 83). Não mais que dois anos, portanto, ficaria Alberto no seringal Paraíso.  

 Em Belém do Pará, um irmão de sua mãe o abrigaria. Mas as coisas não correm como planejado. O tio tratou de arrumar-lhe uma colocação bem distante, onde não fosse um peso a mais. Como já vimos, há um paralelo estrutural com a história de José Maria, que acaba aqui. Na sequência, Alberto vai para o seringal Paraíso, em Humaitá, recrutado por Balbino. No seringal, ele é designado, juntamente com Firmino e Agostinho, para a localidade Todos-os-Santos, recém atacada pelos Parintintins, que mataram Feliciano, a quem a Alberto coubera substituir...

Firmino é o amigo de todas as horas – uma personagem auxiliar na trama, e, em relação a Alberto, seu confidente e o oposto que o complementa. Agostinho é a representação do que há de mais sórdido na natureza do Paraíso. Após uma temporada cortando seringa, Alberto torna-se o aviador do armazém do seringal, onde toma contato com a realidade escravagista na relação entre o patrão e os “brabos”, que trabalhavam sem nunca lograr sair da condição de devedores. Negativados sempre, iam se enredando cada vez mais nas teias do explorador Juca Tristão.

Euclides da Cunha, em página antológica – “Vede esta conta de venda de um homem” –, demonstra de modo irrefutável, com suas artes de engenheiro, que, mesmo nas condições mais favoráveis – o que inclui, sem mulher e filhos – o seringueiro sempre terminava devendo ao patrão, o que ele classifica como a “mais criminosa organização do trabalho” (CUNHA, 2019, p. 57-61). E o testemunho de Euclides data do final de 1905 ou início de 1906, quando o preço da borracha, em ascendência, alcançava altas cotações, pagando aos escravizados muito mais que pagaria em 1919. Arthur Reis lembra da condição de analfabetos da quase totalidade dos seringueiros, reféns da honestidade dos seringalistas, para o que não havia nenhuma garantia (apud BENCHIMOL, p. 326). Alberto era uma exceção, um corpo estranho no meio de brabos e broncos, numa cronologia capenga. Essencialmente, Alberto é uma inverossimilhança.

Aos poucos, o protagonista desenvolve uma consciência de classe que lhe era estranha quando chegara. Percebe-se prisioneiro e, mais que isso, escravo. Apesar de sua mente organizar a sociedade em castas, ele não aceita ficar no porão daquele navio negreiro fundeado em plena selva amazônica. Uma frustrada tentativa de fuga, liderada pelo amigo Firmino, desperta-o de vez, ao perceber que, como cães, que obedecem cegamente ao dono, os seringueiros não tem, entre si, qualquer traço de compromisso ou cooperação recíproca:

 

“Que ideia faziam da solidariedade esses grandes analfabetos? Que ideia tinham da sua própria situação? Mas a culpa seria verdadeiramente deles?” (p. 208)

 

Recebendo a notícia de que fora anistiado em Portugal, Alberto negocia sua liberdade, sendo anistiado também no seringal, no maior anticlímax da narrativa. Antes da viagem, contudo, um incêndio provocado por Tiago destrói o casarão e mata o torturador dos seringueiros, Juca Tristão.

A selva é um romance de espaço, pelo antagonismo onipresente da floresta, e é também um romance de formação, pois Alberto aprende muito sobre o ser humano, amolecendo suas convicções monarquistas em troca de um humanismo ainda pré-iluminista – um avanço para quem começara a viagem de ida como serviçal de algum rei, refletindo sobre “aquela humanidade primária” com quem era forçado a conviver:


“Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida coletiva a beleza e a elevação que ela podia ter? (...) Só as seleções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio.” (p. 41)

 

Tiago – negro, velho, alcoólatra, coxo – é uma alegoria: de mero títere do cruel Juca Tristão transforma-se, após décadas de humilhação, em juiz e carrasco de seu algoz, a quem ele devotara paradoxal submissão. Seu gesto surpreendente guarda uma outra tese da narrativa: o crime bárbaro é a explosão de uma energia acumulada até os limites do impossível. Tiago é um símbolo do trabalhador explorado e – por que não? – uma semente da revolução, que para Alberto principiava a ser o oposto do que era no início da narrativa. 

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.




[1] Uma visão maniqueísta divide a Amazônia em duas perspectivas lineares – paraíso ou inferno –, de onde se abstrai se o texto é adepto do edenismo ou do infernismo.