Zemaria Pinto
Criador
e criatura: paralelos
Sem enveredar por sendas psicanalíticas, é
evidente, a partir da leitura do romance, que o fictício Alberto e o real José
Maria Ferreira de Castro pouco têm em comum, além da distância de casa e da
lancinante solidão decorrente.
Ao chegar no Brasil, Alberto, 26 anos, é
um estudante de direito que lutara pela causa monarquista, na frustrada Revolta
de Monsanto, em janeiro de 1919, e se autoexilara, fugindo de uma possível
condenação por sedição.[1]
José Maria chega ao Brasil em 1911,
tangido pela miséria de sua aldeia natal e a ilusão de ganhar dinheiro fácil no
Brasil. Aos 12 anos de idade, certamente não pensava em política.
Ambos são enganados pelos patrícios que os
receberam, indo para o seringal sob falsas promessas de enriquecimento fácil.
No seringal, enquanto Alberto vai aprender
a cortar seringa, em uma área crítica, José Maria fica trabalhando no armazém –
e escrevendo, pois desde cedo sentira o chamado da literatura. Alberto, após
reler os livros que levara, limita-se ao exercício do “charadismo”, um
passatempo tolo, pretensamente intelectual.
Graças a Nunes Pereira, que teve acesso ao
borderô de José Maria, referente aos anos de 1913 e 1914, ficamos sabendo que
“seus patrões lhe perdoaram o débito, ao fecharem-lhe a conta” (PEREIRA, p.
103). O mesmo aconteceria também com Alberto, num inverossímil acesso de
ternura e gentileza por parte do asqueroso e truculento Juca Tristão.
Por não termos maiores detalhes da estada
de José Maria no seringal, os paralelos terminam por aqui. Como se vê, tirando
o embuste dos compatriotas, o episódio do comendador e a “bondade” dos patrões
de ambos, nada mais os aproxima, além da distância de Portugal.
O mais absurdo de tudo isso é que há quem
acredite piamente que o monarquista Alberto é o próprio Ferreira de Castro, mas
no contexto português: em um sítio monárquico,[2] encontrei, numa postagem
de 2008, uma relação de participantes da Revolta de Monsanto, onde se pode ler:
– José Maria
Ferreira de Castro (civil – escritor)
Esse sítio de mensagens entre apoiadores
da causa monarquista portuguesa, que ainda os há, se estende às comemorações do
centenário da revolta, em 2019, sem que ninguém questione o nome intruso.
Sem dúvida, a vivência de Ferreira de
Castro na selva forneceu-lhe material para a construção da história de Alberto.
Mas, sob o provocativo prisma do distanciamento e do estranhamento e invertendo
os paradigmas de criador e criatura, seria profícuo dizer que Ferreira de Castro
também foi bastante construído pela história de Alberto. (LEÃO, p. 97)
É certo que Ferreira de Castro teve mais
vantagem em ser confundido com Alberto, que o inverso. Alberto, a ficção, tende
a ser esquecido, enquanto a ficção em torno de Ferreira de Castro ganha mais e
mais adeptos, graças às sucessivas publicações de escandalosos equívocos
editoriais.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras.
Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.
[1] A Revolta de Monsanto, em
Lisboa, aconteceu de 22 a 24 de janeiro de 1919, em apoio ao movimento que se
iniciara no dia 19, na cidade do Porto. Este conseguiu se manter até 13 de
fevereiro, quando foi sufocado pelas forças legalistas republicanas. Os
efêmeros 25 dias de restauração do regime monárquico entraram para a história, pela
via da ironia, como Monarquia do Norte ou Reino da Traulitânia (COIMBRA, p.
118-135).