Zemaria Pinto
Estrutura
(testemunhal-realista-documental) comprometida
Se Ferreira de Castro pretendeu um
realismo documental para A selva, comecemos por indicar uma falha básica
na estrutura da narrativa.
Quando
[Alberto] desembarcara em Belém, ido de Portugal, a borracha ainda tinha altas
cotações e exercia profundo sortilégio sobre todos aqueles que davam ao
dinheiro a maior representação da vida. (p. 31)
O moralista narrador engana-se ou fantasia
quanto às “altas cotações”. Em 1919, a demanda pela borracha era 14% menor que
a demanda de 1910, e o preço internacional, nesses mesmos 9 anos, despencara 67,5%
– isto em comparação direta, sem levar em conta o desgaste cambial, agravado
pela guerra de 1914-1918 (BENCHIMOL, p. 252).
– Quando cheguei
ao seringal [há seis anos], ainda a borracha se comprava a dez e a doze mil
réis. (p. 90)
A fala de Firmino revela um novo tropeço no
realismo narrativo: em 1913, o preço da tonelada da borracha era pago a 4,2 mil
réis, não mais que 44% do que alcançara havia apenas três anos (BENCHIMOL, p.
252). Firmino mentia, pela voz do infiel narrador.
A história é conhecida e até hoje chorada
aos borbotões, não vou repeti-la. Nativos da floresta, distribuídos
geograficamente sem nenhuma racionalidade, os seringais estavam à míngua e, embora
continuassem produzindo, não eram mais nem o simulacro da riqueza que gestou a belle
époque amazônica.
Se tivesse levado em conta o fator
econômico, e situado a ação do romance uns dez anos antes, o desenho de Alberto
seria diferente. Em uma primeira versão, aliás, era um líder operário:
No
desdobrar duma greve, com alvorotadas marchas, rúbidos estandartes, gritos,
muitos gestos e protestos, um operário lançava a sua bomba em Belém do Pará. E,
fugindo às buscas policiais, ocultava-se, hoje aqui, amanhã ali, ao sabor
inquieto das circunstâncias (...); depois, corajosas fraternidades davam-lhe a
mão e ele evadia-se para o interior da Amazónia, para a floresta virgem.
(CASTRO, 1989b, p. 22)
Talvez esse rude operário parecesse menos
estranho ao selvagem ambiente do Paraíso que o inverossímil Alberto: estudante
universitário, com aparentes boas leituras e bons relacionamentos, que, exilado
na Espanha, pensa ficar melhor no Brasil, para onde vem sem qualquer
informação, acreditando na conversa de seu parente, que o recebera a
contragosto, de que cortar seringa o tornaria rico. Em 1919, quando a ruína
econômica da região já era vista a olho nu – há anos, conforme comprovamos –,
essa escolha é, para dizer o mínimo, absurda, embora consciente:
Um dia, porém, a hevea[1]
brasiliensis, levada sub-repticiamente por mãos britânicas, desdobrara a
sua nacionalidade, entregando também a seiva enriquecedora em terras de Ceilão.
Ferida pela emigrada, a borracha da Amazónia deixara de ser meio de elásticas
fortunas, limitando a perspectiva das ambições. Era prata e não oiro o que se
colocava agora no outro lado da balança. (p. 32-33)
Percepção errada, era muito, muito menos
que prata, certamente. Prata de tolo.
Seguindo à risca o protocolo da ficção,
entretanto, Ferreira de Castro não está errado. Mas o seu castelo
testemunhal-realista-documental desmorona em definitivo, desmascarando o seu infiel
narrador, tateando cego entre as ruínas.
Sob uma outra perspectiva, entretanto, se
a ficção, que se pretende realista, não encontra reflexo na realidade, e se a fábula
não se estrutura de modo verossímil, qual o seu valor? E aqui não tratamos de
valor histórico, mas artístico. Neste ponto, sem perder de vista o narrador
infiel, passamos a responsabilidade da narrativa diretamente ao autor.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras.
Mas
você pode obter o livro completo clicando nesta linha.
[1] Na
edição trabalhada, a palavra “hevea” foi substituída por “herva”, num caso de
flagrante negligência editorial.