Amigos do Fingidor

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 8/14

 Zemaria Pinto

 

Estrutura (testemunhal-realista-documental) comprometida

Se Ferreira de Castro pretendeu um realismo documental para A selva, comecemos por indicar uma falha básica na estrutura da narrativa.

 

Quando [Alberto] desembarcara em Belém, ido de Portugal, a borracha ainda tinha altas cotações e exercia profundo sortilégio sobre todos aqueles que davam ao dinheiro a maior representação da vida. (p. 31)

    

O moralista narrador engana-se ou fantasia quanto às “altas cotações”. Em 1919, a demanda pela borracha era 14% menor que a demanda de 1910, e o preço internacional, nesses mesmos 9 anos, despencara 67,5% – isto em comparação direta, sem levar em conta o desgaste cambial, agravado pela guerra de 1914-1918 (BENCHIMOL, p. 252).

 

– Quando cheguei ao seringal [há seis anos], ainda a borracha se comprava a dez e a doze mil réis. (p. 90)

 

A fala de Firmino revela um novo tropeço no realismo narrativo: em 1913, o preço da tonelada da borracha era pago a 4,2 mil réis, não mais que 44% do que alcançara havia apenas três anos (BENCHIMOL, p. 252). Firmino mentia, pela voz do infiel narrador.

A história é conhecida e até hoje chorada aos borbotões, não vou repeti-la. Nativos da floresta, distribuídos geograficamente sem nenhuma racionalidade, os seringais estavam à míngua e, embora continuassem produzindo, não eram mais nem o simulacro da riqueza que gestou a belle époque amazônica.   

Se tivesse levado em conta o fator econômico, e situado a ação do romance uns dez anos antes, o desenho de Alberto seria diferente. Em uma primeira versão, aliás, era um líder operário:

 

No desdobrar duma greve, com alvorotadas marchas, rúbidos estandartes, gritos, muitos gestos e protestos, um operário lançava a sua bomba em Belém do Pará. E, fugindo às buscas policiais, ocultava-se, hoje aqui, amanhã ali, ao sabor inquieto das circunstâncias (...); depois, corajosas fraternidades davam-lhe a mão e ele evadia-se para o interior da Amazónia, para a floresta virgem. (CASTRO, 1989b, p. 22)

 

Talvez esse rude operário parecesse menos estranho ao selvagem ambiente do Paraíso que o inverossímil Alberto: estudante universitário, com aparentes boas leituras e bons relacionamentos, que, exilado na Espanha, pensa ficar melhor no Brasil, para onde vem sem qualquer informação, acreditando na conversa de seu parente, que o recebera a contragosto, de que cortar seringa o tornaria rico. Em 1919, quando a ruína econômica da região já era vista a olho nu – há anos, conforme comprovamos –, essa escolha é, para dizer o mínimo, absurda, embora consciente:

 

Um dia, porém, a hevea[1] brasiliensis, levada sub-repticiamente por mãos britânicas, desdobrara a sua nacionalidade, entregando também a seiva enriquecedora em terras de Ceilão. Ferida pela emigrada, a borracha da Amazónia deixara de ser meio de elásticas fortunas, limitando a perspectiva das ambições. Era prata e não oiro o que se colocava agora no outro lado da balança. (p. 32-33)

 

Percepção errada, era muito, muito menos que prata, certamente. Prata de tolo.

Seguindo à risca o protocolo da ficção, entretanto, Ferreira de Castro não está errado. Mas o seu castelo testemunhal-realista-documental desmorona em definitivo, desmascarando o seu infiel narrador, tateando cego entre as ruínas.

Sob uma outra perspectiva, entretanto, se a ficção, que se pretende realista, não encontra reflexo na realidade, e se a fábula não se estrutura de modo verossímil, qual o seu valor? E aqui não tratamos de valor histórico, mas artístico. Neste ponto, sem perder de vista o narrador infiel, passamos a responsabilidade da narrativa diretamente ao autor.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.




[1] Na edição trabalhada, a palavra “hevea” foi substituída por “herva”, num caso de flagrante negligência editorial.