Amigos do Fingidor

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 9/14

 Zemaria Pinto

 

Exotismo, clichês e disparates    

O olhar estrangeiro (inclusive, de dentro do Brasil) tende a ver a Amazônia pelo prisma do exotismo, desde Gaspar de Carvajal, passando pelos viajantes fabulosos – como Raleigh e Acuña –, além da ficção de Julio Verne, Conan Doyle e Gastão Cruls. Nem a lucidez barroco-expressionista de Euclides da Cunha escapa à armadilha. Entre tanto que escreveu sobre a Amazônia, preparando seu segundo “livro vingador”, costuma-se repetir a frase oca – edênica, lírica, mas sem sentido: “a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis” (CUNHA, 2001, p. 27). Um prefácio de Euclides da Cunha valia por toda uma literatura.

Aplicada a um autor português, a assertiva acima tem um certo atavismo: afinal, oficialmente, o português foi o primeiro invasor destas terras, onde, ainda que ligado por laços de quase-propriedade, ele se sente um estrangeiro porque é um não-integrado. A Amazônia como a vê Ferreira de Castro é um amontoado de clichês e disparates. Falando de Lourenço, por exemplo, que não aceitava o ofício de seringueiro, ele sintetiza a lendária “indolência inata” do caboclo amazônico “numa barraca, numa mulher e numa canoa” (p. 116). Não há como não lembrar o macunaímico bordão: ai, que preguiça!...

A viagem ao seringal Paraíso, de cerca de 15 dias, ocupa 32 páginas de descrições, próximo a um sexto do total redigido. A selva, os rios e as pessoas são representados ao longo do livro com clichês animalescos: “imensurável aranha hidrográfica” (p. 42); “monstro líquido” (p. 49); “a pata enlameada que a Amazónia fundia no Atlântico” (p. 64); “a selva, como uma fera (...)” (p. 77). A pequenez do homem diante da selva monstruosa é descrita com uma grandiloquência melodramática:

 

E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. (...) Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.” (p. 84)

 

E mais adiante: “aquele mundo vegetal tinha cruéis egoísmos, ferocidades insuspeitadas e tiranias inconfessáveis” (p. 131). Nem os animais escapam à fúria criativa do narrador infiel: ao descrever uma onça, ele diz que “a folhagem quase não rangia sob o seu listado corpanzil” (p. 164). Estava, decerto, vendo mentalmente um tigre africano.

O clichê mais usado pelo narrador para demonstrar a animalidade da gente que ia para o Paraíso (um trocadilho, por si só, infame) é “rebanho”: nove vezes. Literalmente, desde a primeira página, quando Balbino reflete, via discurso indireto do narrador, sobre a perda de três “brabos”, que ele arregimentara no Nordeste e escafederam-se:

 

Que diria Juca Tristão, que o tinha por esperto e exemplar, quando ele lhe aparecesse com três homens a menos no rebanho que vinha pastoreando desde Fortaleza? (p. 27)

 

O mesmo chavão serve também para descrever os imigrantes japoneses, que chegam no seringal, para trabalhar na agricultura:

 

Era rebanho copioso, de pele seca, proeminências ósseas nas faces e olhar mortiço de quem regressa de outro mundo. (p. 188)

 

Ressalve-se que a desgastada metáfora é de uso exclusivo do infiel narrador e não pode, absolutamente, ser atribuída ao humanista autor.

A descrição de uma tempestade amazônica é o mote para uma cacofônica metáfora musical, quando ouvimos a exótica “orquestra infernal” da “selva endemoninhada”: a “monótona cantilena” cotidiana passa a uma “triste litania” – “um uivo forte, perene e agoirento” – e logo transforma-se em “música épica e desesperada”, “um concerto de instrumentos desvairados”. Quando amaina a “doida apoteose de fim de mundo falido”, a selva “era um monstro que estava ali, pesado, inofensivo, a bramir um sofrimento que não despertava piedade” (p. 133-135).

Outra metáfora musical é usada, com mais rigor, para expressar o silêncio, embora insista na antropomorfização da floresta, uma armadilha do exotismo:

 

E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase. (p. 77)

 

Quando Guerreiro, o guarda-livros, é apresentado ao leitor, o descuidado narrador diz que era “o primeiro homem branco que Alberto via no seringal” (p. 111). Ainda em relação a Guerreiro, o narrador diz que Alberto sente-se próximo a ele “pela cor de sua pele” (p. 153). Ao trocar confidências com Firmino, este deixa escapar, subserviente: “eu tenho pena de seu Alberto. O seringal não é para um homem com a sua pele” (p. 92). O infiel narrador não esconde suas preferências arianas. A trama se passa há mais de 30 anos da Lei Áurea, quando os escravos deixaram essa condição para serem brasileiros, mas não cidadãos, pois eram apenas párias miseráveis. Esse arianismo seria um resquício do choque de raças que o autor, tido e havido como um humanista, presenciara, ainda em criança, ao aportar na babel Belém do início do século XX ou apenas mais uma infidelidade do narrador? A cartilha realista-naturalista ensinava que, do trinômio hereditariedade-meio social-momento, a carga genética era o fator decisivo.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.