Amigos do Fingidor

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Bolero's Bar 16

Folha morta

Zemaria Pinto


Terra caída, levada rio abaixo, metáfora do fim. Eu, menos visível: apenas uma folha à deriva num igarapé raso. Um palhaço em fim de festa, depois de ter sido o anfitrião. Ouço o murmurar da zombaria de todos como a uma invasão de cigarras histéricas. Insisto, pago antes, bebo em pé. Até quem já me bajulou do modo mais servil sente-se no dever de me humilhar – gestos e olhares de desprezo e reprovação. Fecho os olhos, a aguardente queimando o estômago vazio, e me entretenho com minhas lembranças, boas e alegres lembranças que, aos poucos, de jardins luminosos, vão tomando por veredas sombrias até chegar de volta neste maldito bar, onde, afinal, não sou a única matéria em decomposição.

 

Folha morta (1956), de Ary Barroso (Ubá-MG, 1903-1964). Samba-canção.

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