Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de março de 2009

Carta a Quintino Cunha
(uma palavra sobre o encontro das águas)
Tenório Telles
Os rios seguem juntos, por mais de 6 quilômetros.
Leia o poema Encontro das Águas, de Quintino Cunha.

Caro Quintino,

Espero que estejas bem por aí. Imagino o trabalho que estás dando ao bom Deus, com suas estrepulias e sua mania de fazer pilhéria de tudo. Sei que um pouco de riso não faz mal a ninguém e, além do mais, ajuda a quebrar a monotonia celeste. Tome cuidado, soube que São Pedro não tem muito humor. Qualquer hora ele pode te colocar no olho da rua. Caso isso ocorra, venha para cá. Estamos precisando de ti por aqui. As coisas não estão bem e estamos preocupados com os últimos acontecimentos. Especialmente porque alguns espíritos de porco estão querendo construir um imenso porto nas Lajes, o que descaracterizaria a paisagem do encontro da águas.

Caro amigo,

Caso São Pedro não te mande embora, peça uma autorização do chefe do céu para que venhas nos ajudar nessa causa. Tem muita gente boa comprometida com a luta para impedir essa insanidade. Você será muito útil. Precisamos da sua pena afiada e da sua intrepidez para enfrentarmos esses senhores, doentes de ambição e que só pensam em dinheiro, que não conseguem perceber que a beleza do encontro das águas é mais valiosa do que um porto.

Vá logo preparando um novo poema sobre esse encontro mágico entre o Negro e o Amazonas. Sugiro que você os retrate como se fossem guerreiros, lutando contra esses capirotos. Lembrei-me de Dom Quixote combatendo os dragões. Pus-me a pensar no teu poema, na estrofe em que descreves os dois rios (fiquei emocionado com a tua sensibilidade): “Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este/ É o Rio Negro, aquele é o Solimões./ Vê bem como este contra aquele investe./ Como as saudades com as recordações”. Gosto muito da descrição que fazes do Negro, captando-lhe a própria alma. Contigo aprendi que os rios têm alma. Antes de ler o teu texto já pressentia essa melancolia na face do velho Negro e em seu caminhar silencioso, como se uma dor indescritível contamina-se-lhe o ser: “Olha esta água, que é negra como tinta,/ Posta nas mãos, é alva que faz gosto;/ Dá por visto o nanquim com que se pinta,/ Nos olhos, a paisagem de um desgosto”.

Sabe, Quintino, a estrofe em que falas do Solimões é a que mais gosto, por razões afetivas. Passei a minha infância na beira desse rio. Tomava banho em suas águas, mergulhando como um peixe, até o fundo. Estou entranhado até a alma pelo Solimões: saciávamos a sede com sua água. No pote ficava friazinha. Esperávamos sentar no fundo para, então, bebê-la. Ainda hoje sinto o seu sabor e aquele gosto de terra. Esse rio está em mim. Por isso sinto a sua falta e o amo tanto. Há dias em que sinto seu cheiro, ouço o silêncio de suas águas, sua irritação nos dias de temporal. Sinto em meu rosto a brisa que sopra ao amanhecer. Esse rio é uma metáfora da vida. Cumpre com bravura e desapego a missão de dar de beber e alimentar a terra, as plantas, os bichos e os seres humanos. Meu Solimões é, como dizes, um rio virtuoso: “Aquela outra parece amarelaça,/ Muito, no entanto é também limpa, engana;/ É direito a virtude quando passa/ Pela flexível porta da choupana”.

Quintino, tenho a impressão que estavas apaixonado quando escreveste esse poema. Na última estrofe, ressaltas a força do sentimento que te unia à mulher amada, em correlação com a vitalidade e a grandeza das águas dos dois rios. Sabias que é do amor que nasce o grande e o belo: “Se estes dois rios fôssemos, Maria,/ Todas as vezes que nos encontramos,/ Que Amazonas de amor não sairia/ De mim, de ti, de nós que nos amamos!!...”. Essas pessoas que engendraram esse porto, que pode vir a ser o sepulcro desse monumento que nos foi dado por Deus, não têm sensibilidade para perceber o crime que estão cometendo contra a memória e nossa identidade cultural. Também não têm olhos para o belo e o sublime que emanam desse cenário mágico. Márcio Souza tem razão, não dá para imaginar Manaus “sem o espetáculo do encontro das águas”.

Caro Quintino, ia me esquecendo, dê uma palavrinha com Deus, quem sabe ele não toca o coração desses homens. Por via das dúvidas, vou falar com a mãe-d’água e com os bichos do fundo. Se não for suficiente, vou conclamar os espíritos da floresta e desencantar Ajuricaba para liderar essa cruzada.

PS.: Este texto é para Ademir Ramos e sua falange de defensores do encontro das águas.