Amigos do Fingidor

quinta-feira, 12 de março de 2009

Re(vi)vendo Glauber
Zemaria Pinto
Glauber Rocha
(14/03/1939, Vitória da Conquista – 22/08/1981, Rio de Janeiro)
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Se vivo fosse, Glauber Rocha completaria, neste 14 de março, 70 anos de idade. Mas Glauber está vivo através de sua obra: neste 16 de março, seu filme mais emblemático, Deus e o Diabo na Terra do Sol, completa 45 anos desde que foi apresentado em avant-première, para um público especialíssimo, no cinema Ópera, em Botafogo, no Rio de Janeiro. E já que estamos falando nas efemérides glauberianas do mês, não custa lembrar que o esquecido Amazonas, Amazonas, encomenda do governador Arthur Reis, completa, no dia 17 de março, 43 anos, desde que foi exibido pela vez primeira ao mundo no saudoso Cine Avenida.

Não é apenas na maneira como se flexionam os verbos que se indica o estado vital de Glauber Rocha. Em breves 42 anos de existência, Glauber traduziu toda a angústia de seu tempo em 16 filmes – 10 longas e 6 curtas-metragens –, além de roteiros, ensaios, artigos, depoimentos, cartas e até mesmo um romance.

Ao contrário do que reza a lenda, Glauber Rocha não tem muito a ver com o cinema novo, pois Barravento, seu primeiro longa, já está muito à frente do cinema novo. Glauber, é preciso que se diga, destruiu o cinema novo, filho dileto do neorrealismo italiano, assassinado a golpes de facão e tiros de parabélum naquela noite de março de 1964, no cinema Ópera. Deus e o Diabo na Terra do Sol radicalizava toda e qualquer proposta que se apresentara até então. Suas deficiências técnicas mais evidentes são sobrepujadas pela força imagética criadora que Glauber toma emprestada de John Ford e Guimarães Rosa. Nada de maniqueísmo. Nada de mocinhos e bandidos. Nada da eterna luta entre Deus, o Bem, e o Diabo, o Mal, ou vice-versa.

Um épico com meia dúzia de personagens e duas dezenas de figurantes. Uma revolução na linguagem do cinema nacional. Glauber usa recursos poéticos para fazer cinema: metáforas, elipses, metonímias, hipérboles. Assim é que o vaqueiro Manuel e sua mulher, Rosa, representam o povo. E, na relação entre eles, vê-se claramente a latente insubmissão feminina, que tomava corpo em todo o mundo. O povo Manuel/Rosa, alienado, transita entre o fanatismo demente do negro beato Sebastião e o cangaceirismo ensandecido de Corisco, o diabo louro de Lampião. A contrapô-los, numa linha paralela à do “povo”, Antônio das Mortes, o matador a soldo das elites, que sempre dá uma oportunidade ao povo Manuel/Rosa, para que ele faça “uma grande guerra, sem a cegueira de Deus e do Diabo”. A dimensão trágica de Antônio das Mortes, o cão exterminador, sublima-o à condição do próprio anjo anunciador da revolução que se acreditava iminente.

Três anos mais tarde, em 67, o irrequieto Glauber constrói nova obra-prima, Terra em Transe, onde ele enterra definitivamente a estética épico-econômica de Deus e o Diabo, transformada em moda pelos sobreviventes do velho cinema novo, e inaugura, literalmente, a carnavalização cinematográfica, onde o caos narrativo e o discurso rebuscado parecem tirados de um alucinado desfile de escola de samba.

Para se ter uma idéia exata de quem era a “turma” de Glauber, leia-se o que Nelson Rodrigues escreve sobre Terra em Transe, logo após assistir ao filme, já lá se vão 42 anos: “na madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa desta golfada hedionda.”

Assim como o teatro de Nelson Rodrigues, Terra em Transe é um filme “desagradável” sobre um país, Eldorado, em crise, e, por isso mesmo, em transformação: os diversos nichos de poder digladiam-se entre si; a classe média pseudorrevolucionária, representada pelo poeta-jornalista Paulo Martins, tem crises de consciência; enquanto isso, o povo a tudo assiste, passivo, mera massa de manobra. Se em Deus e o Diabo Glauber metaforiza a realidade sem abandoná-la, Terra em Transe deixa de lado, de uma vez por todas, o realismo crítico como método de apreensão dessa realidade e constrói uma grande alegoria neobarroca de um país chamado Brazil.

Premiado em festivais de cinema do mundo inteiro, o baiano Glauber Rocha mostrava caminhos e era assim que os monstros sagrados o viam. Jean-Luc Godard, por exemplo, convidou-o, em 68, para representar a si mesmo em Vent d’Est: um cineasta que aponta os caminhos do verdadeiro cinema políticorrevolucionário. Seu posicionamento político, aliás, era quase sempre polêmico, à esquerda e à direita. Como artista e como cidadão, Glauber despertava amor e ódio. Só não era possível ficar-lhe indiferente.

A guerrilha do Che Guevara, a guerra criminosa do Vietnã, Lamarca e Marighella, o tropicalismo, a contracultura, o feminismo, os Beatles, os Rolling Stones, o movimento estudantil, o movimento negro, a liberação sexual, a luta armada, “a imaginação no poder”: Glauber Rocha era tudo isso e mais o que viria a ser na década seguinte e o que não teve tempo de ser, quando, em 1981, aos 42 anos, numa madrugada de agosto, contra sua vontade, deixou de fazer cinema. Deixou de fazer revoluções.

Glauber dirige Terra em transe.