Zemaria Pinto
(14/03/1939, Vitória da Conquista – 22/08/1981, Rio de Janeiro)
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Se vivo fosse, Glauber Rocha completaria, neste 14 de março, 70 anos de idade. Mas Glauber está vivo através de sua obra: neste 16 de março, seu filme mais emblemático, Deus e o Diabo na Terra do Sol, completa 45 anos desde que foi apresentado em avant-première, para um público especialíssimo, no cinema Ópera, em Botafogo, no Rio de Janeiro. E já que estamos falando nas efemérides glauberianas do mês, não custa lembrar que o esquecido Amazonas, Amazonas, encomenda do governador Arthur Reis, completa, no dia 17 de março, 43 anos, desde que foi exibido pela vez primeira ao mundo no saudoso Cine Avenida.
Não é apenas na maneira como se flexionam os verbos que se indica o estado vital de Glauber Rocha. Em breves 42 anos de existência, Glauber traduziu toda a angústia de seu tempo em 16 filmes – 10 longas e 6 curtas-metragens –, além de roteiros, ensaios, artigos, depoimentos, cartas e até mesmo um romance.
Ao contrário do que reza a lenda, Glauber Rocha não tem muito a ver com o cinema novo, pois Barravento, seu primeiro longa, já está muito à frente do cinema novo. Glauber, é preciso que se diga, destruiu o cinema novo, filho dileto do neorrealismo italiano, assassinado a golpes de facão e tiros de parabélum naquela noite de março de 1964, no cinema Ópera. Deus e o Diabo na Terra do Sol radicalizava toda e qualquer proposta que se apresentara até então. Suas deficiências técnicas mais evidentes são sobrepujadas pela força imagética criadora que Glauber toma emprestada de John Ford e Guimarães Rosa. Nada de maniqueísmo. Nada de mocinhos e bandidos. Nada da eterna luta entre Deus, o Bem, e o Diabo, o Mal, ou vice-versa.
Um épico com meia dúzia de personagens e duas dezenas de figurantes. Uma revolução na linguagem do cinema nacional. Glauber usa recursos poéticos para fazer cinema: metáforas, elipses, metonímias, hipérboles. Assim é que o vaqueiro Manuel e sua mulher, Rosa, representam o povo. E, na relação entre eles, vê-se claramente a latente insubmissão feminina, que tomava corpo em todo o mundo. O povo Manuel/Rosa, alienado, transita entre o fanatismo demente do negro beato Sebastião e o cangaceirismo ensandecido de Corisco, o diabo louro de Lampião. A contrapô-los, numa linha paralela à do “povo”, Antônio das Mortes, o matador a soldo das elites, que sempre dá uma oportunidade ao povo Manuel/Rosa, para que ele faça “uma grande guerra, sem a cegueira de Deus e do Diabo”. A dimensão trágica de Antônio das Mortes, o cão exterminador, sublima-o à condição do próprio anjo anunciador da revolução que se acreditava iminente.
Três anos mais tarde, em 67, o irrequieto Glauber constrói nova obra-prima, Terra em Transe, onde ele enterra definitivamente a estética épico-econômica de Deus e o Diabo, transformada em moda pelos sobreviventes do velho cinema novo, e inaugura, literalmente, a carnavalização cinematográfica, onde o caos narrativo e o discurso rebuscado parecem tirados de um alucinado desfile de escola de samba.
Para se ter uma idéia exata de quem era a “turma” de Glauber, leia-se o que Nelson Rodrigues escreve sobre Terra em Transe, logo após assistir ao filme, já lá se vão 42 anos: “na madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa desta golfada hedionda.”
Assim como o teatro de Nelson Rodrigues, Terra em Transe é um filme “desagradável” sobre um país, Eldorado, em crise, e, por isso mesmo, em transformação: os diversos nichos de poder digladiam-se entre si; a classe média pseudorrevolucionária, representada pelo poeta-jornalista Paulo Martins, tem crises de consciência; enquanto isso, o povo a tudo assiste, passivo, mera massa de manobra. Se em Deus e o Diabo Glauber metaforiza a realidade sem abandoná-la, Terra em Transe deixa de lado, de uma vez por todas, o realismo crítico como método de apreensão dessa realidade e constrói uma grande alegoria neobarroca de um país chamado Brazil.
Premiado em festivais de cinema do mundo inteiro, o baiano Glauber Rocha mostrava caminhos e era assim que os monstros sagrados o viam. Jean-Luc Godard, por exemplo, convidou-o, em 68, para representar a si mesmo em Vent d’Est: um cineasta que aponta os caminhos do verdadeiro cinema políticorrevolucionário. Seu posicionamento político, aliás, era quase sempre polêmico, à esquerda e à direita. Como artista e como cidadão, Glauber despertava amor e ódio. Só não era possível ficar-lhe indiferente.
A guerrilha do Che Guevara, a guerra criminosa do Vietnã, Lamarca e Marighella, o tropicalismo, a contracultura, o feminismo, os Beatles, os Rolling Stones, o movimento estudantil, o movimento negro, a liberação sexual, a luta armada, “a imaginação no poder”: Glauber Rocha era tudo isso e mais o que viria a ser na década seguinte e o que não teve tempo de ser, quando, em 1981, aos 42 anos, numa madrugada de agosto, contra sua vontade, deixou de fazer cinema. Deixou de fazer revoluções.
Não é apenas na maneira como se flexionam os verbos que se indica o estado vital de Glauber Rocha. Em breves 42 anos de existência, Glauber traduziu toda a angústia de seu tempo em 16 filmes – 10 longas e 6 curtas-metragens –, além de roteiros, ensaios, artigos, depoimentos, cartas e até mesmo um romance.
Ao contrário do que reza a lenda, Glauber Rocha não tem muito a ver com o cinema novo, pois Barravento, seu primeiro longa, já está muito à frente do cinema novo. Glauber, é preciso que se diga, destruiu o cinema novo, filho dileto do neorrealismo italiano, assassinado a golpes de facão e tiros de parabélum naquela noite de março de 1964, no cinema Ópera. Deus e o Diabo na Terra do Sol radicalizava toda e qualquer proposta que se apresentara até então. Suas deficiências técnicas mais evidentes são sobrepujadas pela força imagética criadora que Glauber toma emprestada de John Ford e Guimarães Rosa. Nada de maniqueísmo. Nada de mocinhos e bandidos. Nada da eterna luta entre Deus, o Bem, e o Diabo, o Mal, ou vice-versa.
Um épico com meia dúzia de personagens e duas dezenas de figurantes. Uma revolução na linguagem do cinema nacional. Glauber usa recursos poéticos para fazer cinema: metáforas, elipses, metonímias, hipérboles. Assim é que o vaqueiro Manuel e sua mulher, Rosa, representam o povo. E, na relação entre eles, vê-se claramente a latente insubmissão feminina, que tomava corpo em todo o mundo. O povo Manuel/Rosa, alienado, transita entre o fanatismo demente do negro beato Sebastião e o cangaceirismo ensandecido de Corisco, o diabo louro de Lampião. A contrapô-los, numa linha paralela à do “povo”, Antônio das Mortes, o matador a soldo das elites, que sempre dá uma oportunidade ao povo Manuel/Rosa, para que ele faça “uma grande guerra, sem a cegueira de Deus e do Diabo”. A dimensão trágica de Antônio das Mortes, o cão exterminador, sublima-o à condição do próprio anjo anunciador da revolução que se acreditava iminente.
Três anos mais tarde, em 67, o irrequieto Glauber constrói nova obra-prima, Terra em Transe, onde ele enterra definitivamente a estética épico-econômica de Deus e o Diabo, transformada em moda pelos sobreviventes do velho cinema novo, e inaugura, literalmente, a carnavalização cinematográfica, onde o caos narrativo e o discurso rebuscado parecem tirados de um alucinado desfile de escola de samba.
Para se ter uma idéia exata de quem era a “turma” de Glauber, leia-se o que Nelson Rodrigues escreve sobre Terra em Transe, logo após assistir ao filme, já lá se vão 42 anos: “na madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa desta golfada hedionda.”
Assim como o teatro de Nelson Rodrigues, Terra em Transe é um filme “desagradável” sobre um país, Eldorado, em crise, e, por isso mesmo, em transformação: os diversos nichos de poder digladiam-se entre si; a classe média pseudorrevolucionária, representada pelo poeta-jornalista Paulo Martins, tem crises de consciência; enquanto isso, o povo a tudo assiste, passivo, mera massa de manobra. Se em Deus e o Diabo Glauber metaforiza a realidade sem abandoná-la, Terra em Transe deixa de lado, de uma vez por todas, o realismo crítico como método de apreensão dessa realidade e constrói uma grande alegoria neobarroca de um país chamado Brazil.
Premiado em festivais de cinema do mundo inteiro, o baiano Glauber Rocha mostrava caminhos e era assim que os monstros sagrados o viam. Jean-Luc Godard, por exemplo, convidou-o, em 68, para representar a si mesmo em Vent d’Est: um cineasta que aponta os caminhos do verdadeiro cinema políticorrevolucionário. Seu posicionamento político, aliás, era quase sempre polêmico, à esquerda e à direita. Como artista e como cidadão, Glauber despertava amor e ódio. Só não era possível ficar-lhe indiferente.
A guerrilha do Che Guevara, a guerra criminosa do Vietnã, Lamarca e Marighella, o tropicalismo, a contracultura, o feminismo, os Beatles, os Rolling Stones, o movimento estudantil, o movimento negro, a liberação sexual, a luta armada, “a imaginação no poder”: Glauber Rocha era tudo isso e mais o que viria a ser na década seguinte e o que não teve tempo de ser, quando, em 1981, aos 42 anos, numa madrugada de agosto, contra sua vontade, deixou de fazer cinema. Deixou de fazer revoluções.