Amigos do Fingidor

quarta-feira, 11 de março de 2009

A reinvenção cotidiana da vida
Zemaria Pinto

A poesia lírica centra-se na experiência do “eu”. A expressão na primeira pessoa leva o leitor incauto a confundir o “sujeito poético” com o próprio poeta. Mas a confusão não é gratuita, uma vez que a poesia, ainda que não reflita a experiência pessoal do poeta, ecoará sua vivência, sua relação com as coisas e com os entes, seu estar-no-mundo. Assim é que, desde Barro verde, de 1961, o tema recorrente da poesia de Elson Farias tem sido a Amazônia, sua geografia e suas “estórias”. Aliás, o poeta do Romanceiro é o mestre dos poemas narrativos, contos recolhidos nas suas andanças pelas barrancas amazônicas.

Com mais de 30 títulos publicados – e incursões bem-sucedidas na prosa de ficção, no ensaio e na literatura infanto-juvenil –, o poeta Elson Farias dá-nos, em Semibreves & exercícios de harmonia, seu livro mais pessoal. No ensaio introdutório a A destruição adiada, o mais recente livro de poesia de Elson, de 2002, L. Ruas já observava o caráter autobiográfico daqueles poemas, que falam das influências e das preferências estéticas do poeta. Agora, de maneira mais clara ainda, temos uma coleção de poemas que promovem um inventário pela geografia e pela história do poeta.

O livro divide-se em duas partes, exatamente conforme o título. Semibreves fala das coisas simples que cercam o poeta: o cotidiano da vida em família, o natal, uma viagem de férias a Minas Gerais. O tema natalino aparece pelo menos três vezes, mas o poeta mantém o distanciamento, evitando qualquer possibilidade de sentimentalismo: "No lugar onde nasci não existia Natal, / não guardo na lembrança / nenhuma festa de Natal". Aliás, essas são características da poesia de Elson: densidade e concisão, que ele exercita com habilidade numa série de haicais, apropriadamente intitulada “Olhares Breves”.

Os poemas de Exercícios de harmonia, embora de metros variados, são construídos de modo uniforme em três quadras e um dístico. Exercícios tem estrutura assemelhada à Semibreves, com observações sobre o cotidiano e um registro de férias, mas o poeta permite-nos ainda mais intimidade, quando, no “Caderno da Chácara Lili”, acompanhamos o passar do tempo pelas transformações naturais: as chuvas, o verão, a friagem. Mas também conhecemos minúcias da chácara, seus bichos domésticos, como cães, gatos, gansos, galinhas, e outros que por lá passam breves temporadas: sapos, tanajuras, lagartas e até uma inusitada preguiça-real. O livro se fecha com “Caderno de Viagem”, 33 poemas-lembranças de férias européias.

Semibreves & exercícios de harmonia, longe de se constituir num livro à parte na obra poética de Elson Farias, vem reafirmar sua condição de senhor de seu ofício, artífice da palavra exata. Ao diversificar seu trabalho, o poeta reinventa-o, ciente de que "o mundo muda a vida todo dia".