Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de março de 2009

Eu odeio poesia!
Hildeberto Barbosa Filho
O autor tem cerca de 40 livros publicados, entre poesia, crítica e ensaios.
O texto abaixo foi extraído de O escritor e seus intervalos.

Odeio poesia! Não a poesia, por exemplo, de um Dante Alighieri, de um Charles Baudelaire, de um T. S. Eliot, de um Fernando Pessoa, de um Augusto dos Anjos, de um Jorge Luis Borges, de um Murilo Mendes, de um Carlos Drummond de Andrade, de um Jorge de Lima, só para citar alguns dos meus preferidos. Odeio, sim, a poesia dos que ingenuamente confundem poesia com confissão de sentimentos, com a expressão de mágoas, dores, alegrias, boas intenções, enfim, com os estados d’alma que trespassam a sensibilidade dos corações ditos românticos. Odeio essa poesia a que os irmãos Campos ou Décio Pignatari (esta trindade fala sempre mais ou menos a mesma coisa!) nomeiam de “poesia-lágrima”, de “poesia-soluço”, às vezes cometendo injustiças imperdoáveis se pensarmos em alguns dos seus destinatários.

Essa poesia, em que o sentimento aflora de maneira desmedida, caracteriza-se por um aspecto fundamental: nenhuma, ou quase nenhuma, consciência da linguagem. Essa poesia paradoxalmente não logra o intento primeiro da arte poética, isto é, não consegue se transmutar no poema. E por quê? Porque a linguagem, com todas as suas virtualidades possíveis, inclusive e principalmente as virtualidades estéticas, não sofre nenhuma pressão do ato criador, não recebe nenhuma energia especial da poiesis. É pura e estéril linearidade. A bem dizer, prosa medíocre encharcada no lugar-comum das emoções subjetivas, prosa mal cortada como se fora topografia vérsica. Essa poesia não vai além do mero confessionalismo, da simples confidência, do dizer mais direto sem qualquer recurso formal ou retórico que reflitam algum conhecimento mais profundo dos códigos literários e dos movimentos do idioma.

Nessa poesia não existem intermediações estéticas nem semânticas. Tudo é muito claro, muito óbvio, muito previsível. Nessa poesia não há estranhamento nem opacidade. A taxa de literariedade, se é que se revela alguma taxa de literariedade, é mínima, é baixa. Poeticamente estaria no quadro do mais cediço epigonismo. Essa poesia não possui, no campo da semiose, nenhuma isomorfia, nenhuma densidade, nenhuma massa crítica. Seu composto textual é pouco dado a tensões, a ambivalências, a obliquidades, a surpresas, a impactos. Nenhuma idéia, nenhum ritmo, nenhuma imagem, essa poesia simplesmente não existe. Minto: essa poesia existe, está aí em horrorosa abundância. É exatamente por ela que todos, ou quase todos, se consideram poetas. O médico é poeta, o engenheiro é poeta, o corretor é poeta, o jornalista é poeta, o padre é poeta, o comerciante é poeta, a dona de casa é poeta. Até o juiz é poeta! Até o banqueiro é poeta! Até a professora aposentada é poeta! Até o professor de literatura é poeta! A prova é que a minha mesa de trabalho anda cheia desses livros de poesia, livros de autores da minha e de outras províncias. Um parêntese: por amor de Apolo, não me façam ler originais, não me dêem nem me mandem mais esses livros de poesia!

Para referir os mais próximos e mais recentes, que me roubaram horas de leitura de um daqueles preferidos, agora enfileirados na parte mais alta da estante paraibana, enumero, em relação descritiva, citando títulos e autores, alguns nomes representativos: Momentos de emoções, de Elizete Rodrigues Batista Lira; Sentimentos, de Thércía Brandão Cavalcanti; Marcas do tempo, de Rosa Maria Godoy Silveira; Retalhos d'alma, de Maria Abigail Pereira; A moça na janela, de Vitória Chianca; O sentido do olhar, de Ilca Lucena; Poemas místicos, de Magna Celi; Sombras, de Yolanda Queiroga de Assis; A grande mãe e outros poemas, de Zélia Bora; Páginas de vida, de Terezinha Almeida; Verbo amar, de Tânia Rocha Domiciano; História de amor, Quando o inverno chegar e Cânticos do crepúsculo, de Violeta Lima; Filigranas da vida, de Everaldo Dantas da Nóbrega; O fantoche, de Misael Nóbrega; Poesia abrangente, de Carlos António Coelho; Vislumbre, de Marcos Barros, e Jasminando, de Fontana da Costa.

A lista não é exaustiva. Serve apenas para ilustrar, com as ferramentas do texto, os ingredientes específicos dessa poesia. Não transcrevo passagens para comprovar porque devo considerar a sensibilidade e a inteligência do leitor. Devo dizer também que, mesmo odiando essa poesia, respeito, no entanto, o direito subjetivo dos seus respectivos autores de produzí-la e publicá-la. Possuo formação jurídica e sei que o artigo 5, inciso IX, da Constituição Federal, dispõe, dentro do mais legítimo princípio democrático: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, inde­pendente de censura ou licença". Creio até ser muito válida a divulgação dessas obras como já dei a entender em antigo artigo para O Norte, intitulado "Os menores são bem-vindos". A poesia que aí se manifesta termina contribuindo, pelo avesso e indiretamente, para a formação dos juízos literários, na medida em que estes postulam, nos limites possíveis da análise critica, separar o joio do trigo.

Também não culpo as gráficas (não digo editoras, porque aqui não existem editoras). As gráficas, neste caso, funcionam como certas instituições de ensino particulares, submetidas aos ditames econômicos e mercadológicos do "pagou passou". Resultado: qualquer um pode se autopublicar. Existissem editoras, sobretudo editoras sérias, adotar-se-ia algum critério de excelência estética, haveria um conselho consultivo, o investimento no livro e, principalmente, a sua distribuição. Mas, sabemos, não é isto o que ocorre. E tome poesia!

Aliás, só há um tipo de poesia que odeio mais do que essa. É a poesia desses pseudo-inventores, sequiosos por trabalhar e lapidar a linguagem pela linguagem, num exercício de metaludismo autofágico em que esterilidade semântica combina perfeitamente com imbecilidade inventiva. Odeio, sim, essa poesia dos diluidores de vanguardas datadas, dos que fazem do texto poético um quebra-cabeças montado a partir de fragmentos verbais, de soluções aparentemente engenhosas e de práticas experimentais calcadas no canto de sereia das novidades e dos modismos. Essa poesia ainda é pior do que aquela. Se aquela é ingênua, esta é pretensiosa. Seus cultores, que não são poucos, tanto na Paraíba quanto em outros estados do Brasil, normalmente andam em tribos, formam guetos, são arrogantes, oportunistas e adoram fazer proselitismo literário.

Para ficar apenas com os de casa, ou melhor com os que têm publicado nas páginas dos últimos Correio das Artes, na seção de poemas, cito alguns nomes, em geral de poetas muito jovens, que parecem apostar no "império do efêmero", para me valer do sugestivo título de Gilles Lipovetisky. São eles, entre outros, Diego Vinhas, Cláudio Daniel, Paula Ziegler, Antoniel Campos, Daniel Sampaio, Amador Ribeiro Neto, Marcel Vieira, Delmo Montenegro, Arnaldo Antunes, Ed Porto, Pedro Gomes Ribeiro, Ana Lopes, Vamberto Spinelli Júnior, Fábio Cardoso e Rachel Lúcia.

Seguindo a mesma linha de pensamento acerca do primeiro modelo de poesia, esta lista também não é exaustiva. Apenas ilustra o esforço de "inventividade" de alguns poetas que sacrificam a complexidade sintático-semântica do poema em nome de ludismos que pressionam, na mais das vezes aleatoriamente ou por mero mimetismo formal, a carnadura do significante. Como no outro caso, também defendo o direito de expressão e criação deste segmento da poesia contemporânea. Em arte, concordo plenamente com Mário de Andrade, quando na célebre conferência de 1942, procura defender "o direito permanente à pesquisa estética". E por falar no escritor paulista, gostaria de transcrever algumas de suas palavras sobre a categoria da invenção, num pequeno artigo que escreveu a respeito de Riacho doce, de José Lins do Rego, em 1939. Aproveito a oportunidade para endereçá-las diretamente aos poetas que se autonomeiam de "inventores". Eis o que diz o autor de Lira paulistana: “(...) inventar não significa tirar do nada e nem muito menos se deverá decidir que uma das onze mil virgens tocando urucungo montada num canguru em pleno Andes escocês é mais inventado que descrever reminiscências de infância. Aliás, tudo em nós é de alguma forma reminiscência; e a invenção, se invenção justa e legítima, não se prova pelo seu caráter exterior de ineditismo e sim pelo poder de escolha que, de todas as nossas lembranças e experiências, sabe discernir, nas mais essenciais, as mais ricas de caracterização e sugestividade”.

Penso que é exatamente isto – essencialidade, riqueza de caracteres e poder de sugestão – que falta a essa poesia da “inventividade”, aliás – diga-se de passagem –, uma inventividade de segunda mão. A carência de densidade semântica, o apelo desmedido a recursos de automação da linguagem, o cerebralismo estéril e a pose soberba do grafismo verbovocovisual, enfim, o dogmatismo das certezas estéticas terminam por corresponder, dialeticamente, à lógica açucarada da poesia simplesmente sentimental naquilo que ambas, cada uma no seu destino exclusivista, vive a mais deslavada experiência de alienação poética.

Poesia alienada! Que contra-senso! Por isto odeio poesia! Ou melhor, certas modalidades de poesia.

Hildeberto Barbosa Filho, Mestre e Doutor em Literatura Brasileira, é professor da Universidade Federal da Paraíba, no curso de Comunicação Social.