Amigos do Fingidor

sábado, 7 de março de 2009

O adultério ao alcance de todas − estudos de casos

 
Zemaria Pinto

 
O primeiro adultério, na concepção extremamente sensual de Michelângelo (1475-1564).
 

Nesta semana dedicada às mulheres espancadas, vamos falar do adultério, que ainda hoje mexe com a cabeça dos machos espancadores.

O mito do fruto proibido, da árvore do conhecimento do Bem e do Mal de que nos fala o Gênesis, não deve ser relacionado, como se costuma fazer ingenuamente, ao sexo. Adão e Eva faziam sexo como os animais, instintivamente. E sempre que tinham vontade. O que esse mito da falida cultura judaico-cristã representa é, sim, a passagem de um estado de animalidade para a hominização, isto é, a evolução do natural para o cultural. O que em Darwin leva bilhões de anos, no Gênesis tem o tempo de uma mordida. A súbita consciência e vergonha da nudez sentida por Adão e Eva não é pelo sexo: eles se escondem pela consciência da sua nudez moral. Tal como os deputados amazonenses, no caso, só com exemplo, do mentiroso deputado-justiceiro; ou como a corja do PMDB, fugindo à metralhadora giratória do Jarbas Vasconcelos. Ao aceitar o convite para comer do fruto da ciência, Eva comete o primeiro adultério: trai a Deus, todo-poderoso senhor daquele imensurável latifúndio ocioso. Este, na sua infinita e divina ira – puto da vida, mesmo! – implode o paraíso e condena-a e a seu amante a, eternamente, plantar batatas!

A literatura tem registrado inúmeros casos de adultério, um pecado absolutamente original, como o demonstra o mito eviterno de Eva. Escolhi três casos clássicos para comentar. Se alguém sentir curiosidade (pelo menos!) em lê-los, terá valido o esforço.

Otelo, O Mouro de Veneza, de William Shakespeare (Inglaterra, 1564-1616), foi encenada pela primeira vez em 1604, pela própria companhia do autor. Shakespeare não é apenas o maior representante do teatro clássico elisabetano, nascedouro do teatro moderno, mas também, segundo Harold Bloom, é o centro do cânone de toda a literatura universal. Mas há controvérsias.
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Otelo, nobre mouro, general de carreira, casa-se com a jovem Desdêmona, à revelia do pai dela. Iago, com ciúmes de Otelo e de Cássio, mas protegido por aquele, envenena o general negro com indícios de uma possível traição de Desdêmona com Cássio. Otelo mata Desdêmona com requintes de crueldade. Dito assim parece simples, mas a trama urdida por Shakespeare envolve pelo que mostra e pela reação que provoca.

Desde o início, o adultério é apresentado como apenas uma intriga. O público, espectador ou leitor, tanto faz, sabe da inocência de Desdêmona. Iago tece sua teia, não como um amante apaixonado e vingativo, mas como um político sórdido, procurando derrotar seus inimigos com dossiês e declarações bombásticas.

Otelo, a peça, é isso: uma metáfora dos bastidores de uma vil disputa política. Desdêmona, por sua vez, é um mero objeto nas mãos de Iago (instrumento de sua vingança) e de Otelo (que antes de ser seu amigo e companheiro é seu dono). O final da tragédia castiga o Mal, representado nas personalidades doentias de Iago e Otelo, mas não evita o martírio de Desdêmona, um símbolo do povo, que sempre leva a pior nesses embates.

Madame Bovary, de Gustave Flaubert (França, 1821-1880), publicado em 1857, filia-se ao Realismo. É considerado um dos mais importantes romances da literatura francesa. Ema Bovary, mulher mimada e sensual, leva uma vida medíocre e tediosa ao lado de Charles, um fracassado médico de província. Ela envolve-se com Rodolfo, um donjuan hábil em conquistar corações inseguros; começa a fazer despesas que não tem como pagar. Rodolfo a abandona. Ema cai, então, nos braços de Léon, a quem conhecera anteriormente, continuando a acumular dívidas. Pressionada a pagá-las, ela prefere o suicídio à vergonha.

Em Madame Bovary, o adultério é a personagem principal; acontece de modo transparente e claro para o leitor. Como seria de se esperar, só o marido não desconfia de nada. Ao leitor, Ema Bovary é mostrada sem subterfúgios, em todas as suas contradições. Ao ser perguntado – num tribunal que o julgava por ofensa a moral etc. – sobre quem era aquela personagem construída com tanto realismo, Flaubert não titubeou, revirando os olhinhos: “Madame Bovary sou eu!”

Dom Casmurro, de Machado de Assis (Brasil, 1839-1908), publicado em 1900, filia-se ao Impressionismo, que, talvez pelo peso de Machado de Assis, não teve muitos cultores de expressão no Brasil, além do próprio Machado e de Raul Pompéia, autor de O Ateneu. E se alguém aí na platéia acha que eu tropecei na escola, repito: Impressionismo.

Bentinho e Capitu, criados juntos, apaixonam-se e casam-se. Escobar é apresentado como o melhor amigo de Bentinho. Dois anos após o casamento, nasce Ezequiel, e Bentinho, que vinha se revelando inseguro e ciumento, vê na criança o retrato de Escobar. Ele deixa claro a Capitu as dúvidas quanto a sua conduta e a do amigo. Escobar morre, prosaicamente, nadando no mar. As lágrimas de Capitu conduzem Bentinho à ideia de suicídio, homicídio e, por fim, de separação. Ela parte com o filho para a Suíça e lá vem a falecer. Quando Ezequiel, já homem feito, retorna, Bentinho não consegue ver nele senão o retrato do amigo morto. Ezequiel, que era arqueólogo, parte novamente, vindo a morrer em uma expedição a Jerusalém. Bentinho, então, escreve sua própria história, procurando convencer-se, e ao leitor, da traição de Capitu.

Em Dom Casmurro, a personagem principal é a linguagem. Machado desconcerta, envolve, brinca com as emoções e o bom senso do leitor descuidado. Ainda hoje, tem muita gente boa buscando a solução para o enigma de Capitu na mediocridade da vida real. Bobagem. O bruxo do Cosme Velho, utilizando o que aprendera em Shakespeare e Flaubert, dois de seus autores favoritos, reescreve as histórias de Desdêmona e Ema: de Desdêmona, Capitu tem a presumível inocência; de Ema Bovary, ela tem a culpa que o otelo Bentinho vê estampada na figura de Ezequiel.

Aliás, a discussão sobre a culpa de Capitu é, na verdade, inócua, inútil e estéril. E burra. O culpado, o único, é Bentinho: Dom Casmurro é um exercício de autopsicanálise, como se isso fosse possível, ainda mais antes de Freud, que Machado não teve tempo de conhecer. O que Bentinho faz, indiretamente, é a denúncia do machismo e da hipocrisia do ciúme numa sociedade que só vê o “crime” feminino, mas que tolera e até incentiva a contravenção masculina. A mais soberba criação literária sobre o adultério masculino, não por acaso, traz um nome de mulher: Medeia − é ela o centro de todas as tormentas decorrentes do “deslize” de Jasão. Mas essa é uma outra história.

Seria ocioso dizer que estamos diante de três realizações geniais. Shakespeare estrutura a tragédia política da artimanha e da mentira, tendo o adultério como pano de fundo. Flaubert, por sua vez, expõe a chaga da mediocridade da vida cotidiana. Machado de Assis, por se servir dos dois mestres, vai mais longe: constrói a fábula da dúvida. Afinal, é esse o verdadeiro leitmotiv do adultério. Desde Eva.