Amigos do Fingidor

segunda-feira, 23 de março de 2009

Um imortal
Marco Adolfs
O poeta Luiz Bacellar.

Sempre encontro o Luiz Bacellar, um dos nossos poetas maiores, andando por aí. É um filósofo em nossas ruas, que apesar de estar diminuindo de tamanho, aumenta a sua credibilidade quando diz as suas verdades. O Luiz é um desses satíricos que têm não só a força da palavra afiada, mas a certeza da sabedoria bem dirigida.

Estávamos sentados uma tarde de domingo a uma mesa de café do Millenium Center, quando ele me disse que estava sendo torturado. Fiquei momentaneamente estarrecido e perguntei: “Como assim, torturado, Bacellar?” Aí ele me contou que no lugar onde ele modestamente amarra a sua rede para dormir, descansar e meditar sobre o tempo e o espaço amazônicos, resolveram jogar boliche. “Parece que tem até um campeonato de derrubada de pino em cima da minha cabeça!”, ressaltou. Confesso que fiquei preocupado com o rumo dos acontecimentos. Pois para mim, cabeça de poeta é para ficar tranquila e não ser perturbada com qualquer tipo de agressão. Foi quando me veio à mente o que ele escreveu em determinado instante de sua vida poética: “Esta lua é dos loucos. E eu pressinto / que vizinho já sou dessa loucura... / No entanto, sinto quanto a noite é pura / com um diurno sentimento de que minto / sorvendo o azul e trágico absinto / do luar.” E ele assim, vizinho dessa outra loucura dos nossos dias, sem poder sorver em paz o seu absinto. Sem poder, sequer, resolver em paz as suas frases.

– Grita o teu Frauta de Barro, Bacellar! – deu vontade de dizer. – E se possível em um megafone! – completaria.

Mas resolvi apenas escrever este modesto artigo, para denunciar o ocorrido. Pois as noites não são mais puras para o poeta Bacellar. O caos urbano e o barulho insidioso dos novos bárbaros atingem-no em cheio em sua rede, não o deixando sossegar. O jeito, para o Bacellar, é então escapar para as ruas ou para a Academia Amazonense de Letras.

Mas nem lá, na Academia Amazonense de Letras, é possível mais o descanso para o Bacellar. E por falar em Academia Amazonense de Letras, já me vem à baila mais uma história do Luiz.
Estava eu um dia desses na sala, atulhada de papéis, do Tenório Telles, a conversar sobre a nossa literatura, quando assomou o baixinho, propalando o seguinte:

– Roubaram a Academia Amazonense de Letras!!!

Ao escutar essa frase, vinda da boca do Luiz, os segundos viraram uma eternidade em minha cabeça. Imaginei logo que tipo de ladrão invadiria aquele prédio? E para roubar o quê?
Mas aí ele explicou melhor.

– Roubaram um vaso para plantas!

– Mas a Academia não tem nenhum vigia? – perguntei, impressionado.

– Não.

“Quais são os tesouros reais, escondidos no interior de uma Academia de Letras?”, pensei com os meus botões.

Vejamos: um vaso de planta é um vaso de planta é um vaso de planta.

Poderia ser, mas não em um pátio de uma Academia de Letras.

Em um lugar – onde a obra de um poeta ou prosador que ali foi colocado se reveste de uma força como a de uma planta cultivada; que, da semente da inspiração, criou a flor da consagração – os tesouros de uma Academia de Letras passam a ser tudo o que lá existe.

Costumo comer o meu quibe de quase todos os dias na banca da dona Branca, que fica no outro lado da rua e vejo que, realmente, a Academia Amazonense de Letras parece até um prédio abandonado, abertos aos ladrões. Ainda bem que está em reforma.

Mas, por falar em imortal, se tem um imortal que faz jus à sua condição, este é o Bacellar. O homem não sossega. Ainda bem. Imortal que se preze, deve andar pelas ruas dessa nossa existência, sem parar. Se possível, cutucando o vento.

E se, um dia desses, encontrasse novamente o Bacellar a caminhar e cutucar o vento, gritaria:

– Muito bem, Bacellar! Revela aos outros o que anda acontecendo! Roube os sonos dos incautos e ponha o dedo na ferida dos indigentes!

E ainda pediria a ele para recitar o seguinte trecho de seu clássico poema: “Luar peripatético e falaz, / deambulatório luar, atro e minaz: / versos contados por passadas lentas. / Pelo meu ritmo interior levado / eu vou compondo, a passo magoado / o poema. E enchendo as horas lutulentas.”

Aí, pensei: torna-se extremamente necessária a composição imagética de uma nova Academia de Letras, já que ela está em reforma. Por que não pintá-la de uma cor mais vistosa? Um amarelo luminoso. Ou então da cor do Teatro Amazonas, ali perto? Porque, cinza, do que jeito que está, ela não pode mais ficar.

E o Bacellar, sabendo disso, poderia muito bem fazer a feira com suas palavras bonitas, sob o sol de uma bela Academia.