Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A medicina sob a guarda da iatrofísica
João Bosco Botelho

A diferença entre a medicina-oficial, a reconhecida pelo Estado, da praticada pelos curadores das religiões (medicina-divina) e a dos conhecedores dos saberes historicamente acumulados (medicina-empírica), reside no fato de a primeira estar assentada em processos teóricos temporários, substituídos ou reconstruídos na dinâmica do movimento técnico-científico, em torno da busca incessante da materialidade da doença, legitimando o tratamento e o prognóstico.

Um desses processos teóricos — a iatrofísica —, a partir do século 16, teve profunda influência na medicina-oficial. Um pilar dessa mudança pode ser compreendido nas palavras de Galileu Galilei (1564-1642): “Aquilo que acontece no concreto, acontece no mesmo modo no abstrato, os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador que não sabe calcular”. A afirmação retratou muito bem o pensamento dominante da época: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens.

Inexoravelmente, o novo conceito do corpo como máquina substituiria os humores hipocráticos e os temperamentos galênicos. Mensurou-se a máquina humana em níveis nunca antes imaginados. O corpo desvendado pela anatomia renascentista teve as partes comparadas ao fole, filtro, tesoura e prensa.

Estava aberto outro caminho na compreensão dos mistérios do corpo.

O médico Santório (1561-1636), um dos precursores que aplicou nos diagnósticos das doenças as novas mensurações, em especial, a temperatura corpórea, após medir a quantidade de urina e fezes e comparar com o peso do alimento ingerido, concluiu que o corpo deveria eliminar por outras vias parte do que era ingerido. Denominou esta perda de “perspiração invisível”, que depois de dois séculos, seria conhecida como metabolismo basal. As argutas observações foram publicadas, em 1614, no livro De Statica Medicina, reproduzido em várias edições e línguas, onde descreveu com incrível clareza a idéia de que o corpo humano assemelhava-se à uma máquina.

Assim, sob o crivo da iatrofísica, todos os fenômenos biológicos foram reduzidos a simples reprodução dos fenômenos físicos. Os iatrofísicos não sentiram dificuldade para comparar os pulmões ao fole; os dentes, à tesoura; o estômago, à garrafa e o rim, ao filtro; porém, não estabeleceram relação coerente entre as partes.

O mais importante representante dos iatrofísicos foi Marcelo Malpighi (1626-1696), aluno de Santório. O magistral Malpighi, ao usar as lentes de aumento para ver o invisível aos olhos desarmados, introduziu o pensamento micrológico na busca da materialidade das doenças:

“O aparelho é fixado num círculo, móvel na base; para ver tudo é preciso girá-lo; num só golpe de olhos, pode-se ver apenas uma pequena parte do conjunto. Para observar objetos muito grandes é preciso poder distanciar e aproximar as lentes e isso é possível graças à mobilidade do aparelho sob os seus pés. deve ser usado com um ar sereno e límpido, sendo melhor utilizável ao sol, para que o objeto seja bem iluminado. Contemplei inúmeros animais pequenos com a admiração infinita: Entre eles, a pulga é horrível, o mosquito e a traça, os mais belos, e foi com grande contentamento que vi como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar...”.

Hoje, a genialidade de Marcelo Malpighi continuamente presente: as ações de saúde, objetivando materializar a doença são alicerçadas no diagnóstico microscópico, entre as infecções e os tumores. A maior preocupação do homem do século 21, em relação à sobrevivência, é saber se é portador, está com infecção ou com tumor. Este fato é facilmente comprovado pelas grandes campanhas mundiais de esclarecimento de que é possível evitar o câncer, as infecções e a AIDS. Em todos estes casos, o diagnóstico é obtido por meio da microestrutura.

O médico italiano soube identificar e aproveitar algumas variáveis importantes. Além do estímulo coletivo de resistir aos dogmas da Igreja, que contagiou a Europa renascentista, os primeiros estudos da óptica foram fundamentais para que pudesse ser montado o microscópio.

A utilização das lascas de cristais para o aumento do objeto é muito antiga. As primeiras lentes apareceram no século XIV. Na Catedral de Charters, na França, no vitral no lado ocidental, um artesão está trabalhando com óculos. Acredita-se que seja a mais antiga representação do uso de lente de aumento de modo semelhante ao de hoje.

O rápido conjunto das novas observações consequentes ao uso do microscópio gerou muitas sociedades científicas, onde eram discutidas as descobertas da microestrutura do corpo humano e dos micróbios. Entre as aplicações imediatas a de maior destaque foi a identificação do ácaro, como o agente causador da sarna. Essa doença da pele, conhecida desde os tempos bíblicos, estava incluída entre as oito moléstias aceitas como contagiosas, mas até então sem etiologia reconhecida. A identificação do ácaro foi a primeira prova de que o micróbio poderia ser a causa de uma doença.

O modo como os médicos seiscentistas relacionavam-se com os doentes passou a ser criticado. A frieza do conceito mecanicista de vida simplificava as funções vitais ao nível de simples acontecimentos mecânicos. Os médicos contentavam-se com a descrição dos sintomas... a distância. Foram esquecidos os mais elementares valores da relação médico-paciente e aparelhos interpostos entre o médico e o doente.

O auge da crítica à medicina mecanicista, sob a estrutura teórica da iatrofísica, atingiu maior consistência com as publicações de Thomas Sydenham (1624-1689), que defendeu de modo explícito, até o final da vida: ponto fundamental da Medicina é a presença do médico à cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem auxiliar na cura. Existem muitas atualidades na proposta de Sydenham. Hoje, o médico tende a se afastar do doente e enfatizar os recursos tecnológicos disponíveis. Essa atitude impede a compreensão do componente social no aparecimento e desaparecimento das doenças.

O exagerado tecnicismo em muitos currículos médicos é um dos suportes dessa prática distanciada do doente: os estudantes são mais treinados para diagnosticar as raras doenças cardíacas utilizando sofisticados aparelhos do que identificar as carências nutricionais do subdesenvolvimento; realizar a cesariana controlada pelo ultrassom do que o parto normal, que exige muitas horas de observação e acompanhamento ao lado da gestante.

As críticas à exclusividade da iatrofísica, amparando os processos teóricos da Medicina, no século XVII por Sydenham, continuam atuais e contribuindo para que o médico deva sempre estar à cabeceira do doente, antes da utilização da tecnologia.

Malpighi trouxe a doença do macrocosmo do corpo para a microestrutura do micróbio e renorteou a Medicina. Ilustração do pulmão da rã com a trama vascular e vesicular também encontrada no humano.



Partes do corpo humano entendidas como máquinas.