Zemaria Pinto*
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Na paisagem, da esquerda para a direita, entre outros: Marcos Frederico, Zemaria Pinto, Celdo Braga, Antônio Pereira e, atrás do microfone, Jaime Pereira.
A primeira notícia que se tem sobre Tenório Telles é que ele não chorou naquela madrugada do dia 02 de setembro de 1963. Passou toda a infância e parte da adolescência silenciando só o essencial, a guardar energia para, adulto, falar com a fluidez e a sonoridade de um tigre borgeano. Mas D. Celina conta que mais de uma vez o ouviu chorando na barriga, atributo e prerrogativa de profetas.
Depois, veio a revolução, sonho que se esvaneceu quando lhe deram um revólver para se defender dos porcos capitalistas. Tenório entendia que sua posição era no ataque, por isso vestiu a nº 9 canarinho – logo ele, que não distingue entre um lateral-direito e um ponta-esquerda –, pulou a cerca do primeiro jardim baldio que encontrou e colheu todas as flores silvestres disponíveis. Tinham um colorido esmaecido, e não eram belas nem cheirosas, eram apenas flores. Desde então, ele tem se dedicado a atirá-las aos passantes incautos – não em emboscadas guerrilheiras, mas à luz do dia e das estrelas.
Nascido à beira de um lago quase sem nome, Tenório não dispensa a paz dos engarrafamentos e dos shoppings centers. Prefere a missa aos domingos, quando é impossível entrar nas igrejas. Amou poucas mulheres, mas é amado por muitas – todas elas leitoras implacáveis –, algumas das quais aqui presentes... Não se sente responsável pelo que cativa, senão teria milhares de responsabilidades a mais – chamadas Rosas, Dálias, Margaridas e outras flores. O Aristides, ao contrário do que todos pensam, não é seu filho – é seu irmão mais novo, amigão de fé, camarada.
Extremamente tímido, Tenório busca refúgio no centro do palco, sob a luz dos refletores, que insistem em focar sobre ele. Dorme pouco – mas, se o dia tivesse 48 horas, dormiria menos ainda, buscando maximizar o mínimo tempo disponível. Diurno, prefere a solidão da noite para criar, regando avencas, begônias e gardênias nos jardins suspensos dos seus sonhos.
Tem muitos amigos. Tantos que, de cada um deles, sabe de cor, além dos telefones celulares e convencionais, o título de eleitor, o RG, o CPF e a inscrição no PIS/PASEP. Cansado dos escândalos políticos que pululam como pipocas selvagens em seu tropical país, passou a dar especial atenção aos cães, aos quais dedica o tempo antes reservado à leitura de jornais. Mas seus melhores amigos são mesmo os livros, especialmente porque não ladram e nem precisam ser levados a passear.
Os primeiros poemas surgiram com as primeiras palavras que ele escreveu ou falou. Os últimos poemas ele os há de dividir conosco, com a mesma ternura com que divide os mais diáfanos raios de sol e as águas cotidianas do seu imenso Amazonas. Quando escreveu A Derrota do Mito, Tenório estava grávido – ávido de esperança e de transformações. Por isso aquele tom sombrio, que é o seu jeito de nos mostrar a beleza da luz. Mas Tenório é um autor incomum, porque é um autor de autores: alguns ele inventa; outros existem por si mesmos, mas não seriam ninguém sem ele. Eu, por exemplo. A obra do editor Tenório Telles paga com troco milionário o tributo de sua aventura na Terra.
Mas, não-satisfeito, ele, um especialista em florilégios, quase um floromaníaco, analisa e psicanalisa a polifrorífera literatura brasileira, com uma destreza de corar de inveja a Freud, Jung, Lacan e outros floricoroados. Comove-me o retrato de Machado de Assis: por 30, às vezes, 40 minutos – depende do volume da plateia – ele discorre sobre o menino preto, pobre e doentio que se transformou no maior escritor brasileiro de sempre. Machado, vaidoso como era, se orgulharia da performance de Tenório e agradeceria com um leve meneio de cabeça, falseando a quase incontida emoção.
Emoção que Tenório não se preocupa em reprimir. Seja ouvindo a Nona com a sinfônica de Berlim ou a voz de pássaro liberto de Maria Lúcia Godoy, entoando a Bachiana Nº 5 nos altos do El Perikiton, entre petiscos de ovas de jaraqui, dúzias de sardinhas fritas e doses desmedidas de guaraná Baré. Lembranças de uma juventude recordada com ternura, mas sem saudades. Lembranças de Tereza Katsuko e Valadares, colunas-mestras da sua formação, forjada na mais austera disciplina e na mais absoluta loucura. Lembranças dos dramas que ficaram para trás e que o tempo tornou comédias bufas. Lembranças do amigo Paulo Graça, que em algum lugar do éter se diverte com nossa efêmera condição de frágeis homens.
Tenório Telles tem o dom e tom exato da palavra e com elas combate, sem palavras-meias, a barbárie, a estupidez e a ignorância. Para ele, a medianidade e a mediocridade se confundem num alvoroço medieval: é contra o banal e o vulgar que ele se insurge. E de suas mãos e de sua boca brotam palavras de fogo, que incendeiam a inconsciência dos fiéis. Militante da Utopia, ele acredita que somente sonhando sonhos impossíveis a humanidade pode avançar além do sonhado pelo Mahatma Gandhi, por Martin Luther King ou pelo Dalai Lama, que sonharam ou sonham o mesmo sonho do Cristo, que os homens se encarregaram de deturpar e de com eles acumular riquezas pessoais. Como na velha canção, ele acredita que sonho que se sonha junto – de olhos abertos, ouvidos atentos e um poema em cada mão – é a realidade possível de ser construída. Está ciente de que a cada dois passos à frente será dado um passo atrás; mas sabe também que o abismo não é o limite, pois aprendeu a voar.
Alguém já falou da sua figura romântica. Ora, o romantismo é a vertigem – o grito pela liberdade de criação: caos, anarquia, aventura, desequilíbrio, escuridão. A vertigem é o não. Mago, profeta, predestinado, o romântico sob a vertigem tem êxtases místicos que lhe descortinam o suprarreal e o infinito. Tenório Telles é um romântico, sim, mas um romântico à moda antiga, visceralmente lúcido, dos que acreditam que o mundo pode ser mudado e que a literatura, transformando indivíduos, contribui para transformar o mundo; dos que pensam que os valores éticos e morais são mais importantes que os não-valores transitórios e pusilânimes que norteiam a cultura da vantagem e da negociata; dos que crêem, enfim, que o paraíso não está em outra dimensão e nem é físico, mas está na mente e no espírito de cada mulher e de cada homem.
Este é o retrato 3x4 de um amigo 100%. Assim falando, entretanto, vocês não têm nem ideia de sua estatura e, muito menos ainda, de sua profundidade. Para mostrá-lo em sua inteireza, precisaria dos traços de um Van Gogh ou de um Edward Munch – ou, quem sabe, da câmera de um Chaplin ou das palavras de um Drummond. Diante desse impasse, continuem tentando descobri-lo por inteiro, como eu o faço há quase 30 anos...
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*Lido pelo autor, por ocasião da festa pelos 46 anos do homenageado, na última Quarta Literária, dia 02 de setembro.